Eu tinha alergia a gente despreparada. Causavam-me comichão e vontade de discretamente enroscar o traseiro na direção oposta de forma a aumentar o perímetro de segurança.

Como assim não trazes guarda-chuva se havia 27% de hipóteses de chover? Não tens uma maçã para a portagem do ratinho das 17h? Ele é um cliente regular. E as botas da neve? Estão 30º agora, mas e o aquecimento global?

Tanta coisa podia correr mal. Aquele raio bater-me diretamente na cabeça e eu esquecer-me do meu próprio nome, o sistema financeiro falhar, os satélites saírem de órbita, o país fechar as fronteiras, o meu passaporte deixar de ser reconhecido. O drama oscilava ao sabor do tempero do dia.

E então lá ia eu, armada em canivete suíço, com bolsas escondidas em 3 sítios em cantos de malas diferentes nunca partilhando um espaço, fatos de banho para a neve, cópias plastificadas de documentação, 6 ovos cozidos, 5 cartões, 13 pares de meias e sabão para se for preciso lavar. Quando chegasse o apocalipse, o conteúdo do meu trolley de 23kg era a única coisa de que me poderia valer.

No entanto, como em tudo, conforto traz relaxamento, e precauções não utilizadas começam a parecer-se mais e mais com gastos e quilos de bagagem desnecessários. Como aquele primo afastado que, agora com cabelo grisalho, passa por irmão.

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Entrei na Mongólia num comboio noturno, por uma fronteira como já não as pensei existir. Controlo militar e armado que exige verificação de pé e sem óculos, para corresponder à imagem no passaporte. Tive que segurar a mão para não fazer uma continência. E de entre os 100 estrangeiros cujo pedido de entrada era avaliado, calha-me a fava de ouvir quatro palavrinhas mágicas “come with me please”.

O teu visto está errado, precisas de um novo, explana, com este nível exato de detalhe, o senhor Mogol fardado, na sala ao fundo do corredor da estação transfronteiriça onde não se via uma placa para wc e onde os únicos ocupantes, no bater das 23h locais, eram outros cidadãos cuja vestimenta tinha a mesma proveniência. ‘São 120.000 tugrik’ continua o esclarecimento.

Com orgulho de pessoa que se sente indignada por estar a ser posta no clichê do suborno ao militar alfandegário do país em desenvolvimento, ainda tentei um ‘só posso pagar metade’. Fui então informada das minhas duas opções, regressar à Rússia onde já tinha gasto a minha única entrada ou ficar ali, onde notei ainda sobrar uma cadeira, já que um dos senhores soldados dormia estendido em apenas três.

A minha ingénua carteira não estava preparada para este golpe inesperado. Entre migalhas de euros, dólares e rublos totalizava-se um triste desfeito para esta história. Em retrospetiva, culpo o primo, que além de envelhecido é má influência e me permitiu relaxar mais do que o ponto.

Valeu-me, na aflição, aquela ferramenta mágica que é a chave mestra dos problemas mundiais e que a todos nos cabe no bolso. A solidariedade humana. Acabou-se o drama da mesma forma que se iniciou, ‘do you need help?’, pergunta o meu vizinho de compartimento de comboio.

Paguei um novo visto, aos meus olhos, igual ao primeiro (iliteracia por certo!), com o dinheiro que um desconhecido carregava numa daquelas bolsas isoladas no fundo da mala.

Hoje, sentada à mesa de um restaurante que podendo ser típico da Mongólia, era coreano, olho para o miúdo de cinco anos com nome rio americano, a comer couve fermentada perante o olhar orgulhoso do seu pai, a.k.a. vizinho salvador, e reconheço-lhe muitos motivos para ter fechado tranquilamente a porta do compartimento onde levava a família. Parecendo que não, a paragem ainda foi de duas horas, não era cedo e sabe-se como se põe os miúdos quando não dormem.

Não só não fechou a porta, como ainda me desemperrou a minha, que ameaçava deixar-me trancada do lado de fora. Ocorreu-me que a melhor forma de agradecimento, para além de pagar pela couve, que não era grande especialidade, seria que de hoje em diante, em vez de me preocupar em carregar apenas o meu pesadíssimo canivete, mantivesse também eu, sempre à mão, a chave mestra. Nunca se sabe que portas se nos surgem por desemperrar.