“Não temos dinheiro para pagar essa reivindicação”, declarou António Costa no debate quinzenal da Assembleia da República, em resposta aos seus apoiantes parlamentares do PC e do Bloco sobre o descongelamento das carreiras dos professores. Seiscentos milhões de euros por ano, segundo as contas do primeiro-ministro, é dinheiro demais para o que há nos cofres do Estado. Bloco e PC dizem que o governo voltou atrás nas promessas que havia feito e que Costa e o ministro da Educação se mostraram arrogantes e intransigentes. Costa respondeu que não fez promessas nenhumas dessas e que não é arrogante nem intransigente: arrogantes e intransigentes são os sindicatos.

A discussão sobre quem tem razão em matéria de promessas, arrogância e intransigência é, num certo sentido, pouco importante. Em contrapartida, a franqueza de António Costa, praticamente nunca vista, merece ser assinalada. PSD e CDS disseram o óbvio. Como? Não há dinheiro? Então a “página da austeridade” não foi “virada”? Não foi a dita austeridade o fruto de um sinistro plano de Passos Coelho para arruinar o país em benefício do extravagante enriquecimento de uns poucos? Subentendia-se nesta retórica surpresa, é claro, a verdade básica que a austeridade não acabou nada e que o país vive nela ainda inteirinho, com doses cavalares de impostos indirectos e as famigeradas “cativações” do ministro Centeno. Em suma, a esplêndida franqueza de António Costa teria mostrado sem margem para dúvidas que o rei vai nu.

Não sei, de facto, como evitar esta conclusão, que nem necessitava de uma tão ilustrativa demonstração. Mas o que me parece mais interessante é outra coisa. A questão é que o “Não temos dinheiro” mostra, pela negativa, o poder da ilusão. Se a ilusão vai resistir ou não, ninguém faz ideia, até porque isso depende dos interesses eleitorais do Bloco e do PC, que têm em si o poder de a ferir de morte. O “Não temos dinheiro” traz à luz a falsidade patente da ilusão segundo a qual todos os males do mundo tiveram origem na maléfica vontade política da direita encabeçada por Passos Coelho, o mito fundador do costismo.

Mas como criar a ilusão – e, sobretudo, como a manter? Claro que o jornalismo amigo, sobretudo amigo do BE, ajuda imenso. Basta pensar na maneira em como o tratamento das concepções políticas da direita difere do das da esquerda e como diferem as reacções a propósitos em tudo idênticos vindos de um lado ou de outro da barricada. Essa diferença faz de tal modo parte do ar que se respira que acredito sem pestanejar que a parcialidade da coisa escape por completo a muita gente que a exibe e a mais gente ainda que a acolhe como imparcialidade. E há certamente uma boa dose de talento. Diz-se muitas vezes que Costa é “o político mais talentoso da sua geração”. Se se entender por “talento”, para além do jeito em passar rasteiras aos outros, a capacidade de criar ilusões e de lhes dar a aparência de uma consistência real até elas se tornarem quase parte do senso-comum colectivo, é bem capaz de ser verdade. Para convencer as pessoas, apesar de todos os desmentidos gritantes nos mais variados domínios, do “virar da página da austeridade”, um talento especial é necessário e António Costa tem-no.

O essencial, no entanto, para que a ilusão persista, deve-se a outra coisa que não a influência do jornalismo ou a singular habilidade do primeiro-ministro. Estou a falar da quase inimaginável credulidade que as lindas palavras dos nobres sentimentos quase inevitavelmente inspiram. E a esquerda, que tem um extenso arsenal delas, ao qual vai acrescentando de tempos a tempos umas novas, usa-as com uma falta de vergonha e uma intensidade que fariam corar o mais arcaico dos beatos. O limite de elasticidade da crença que essas palavras, todas feitas de símbolos e emoções, suscitam é enorme. A crença não se rompe facilmente e a cegueira é um seu elemento protector. Podem vir sinais anunciadores de perigo de todos os lados, pode a vida empírica desmentir dia após dia a vida imaginária, que a crença continua sólida. Lembram-se da reeleição de Sócrates contra Ferreira Leite? “Não temos dinheiro”, mas a austeridade acabou. Acabou mesmo, não tenham dúvidas.

E quem, no fundo, não tem vontade de acreditar? Por mim, mesmo sem alguma vez poder alcançar os cumes de beatice esquerdista, não me importava nada de me convencer, nem que fosse por um só dia, do primeiro matinal café à noite, do que Costa nos conta e de não atribuir qualquer significado particular àquele “Não temos dinheiro”. Aposto que até me fazia bem. Sou exactamente como os meus compatriotas. Nisso e noutras coisas. Já não passo um dia sem notícias ou debates ou conferências de imprensa televisivas sobre o  Sporting. É muito viciante. Quando faço um intervalo no trabalho e vou ver um bocado de televisão, passo pelo escritório da minha mulher e digo-lhe: “Vou saber coisas do Sporting.” E acreditem que não preciso nunca de esperar sequer cinco minutos para que a minha curiosidade seja satisfeita. Só tenho uma dúvida. O que acabará primeiro: a barafunda da “nação sportinguista” ou a crença no “fim da austeridade”?

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