Há momentos em que o ar que se inspira na política portuguesa se torna nauseante e irrespirável. O agravar das tensões na Venezuela coloca-nos num desses momentos. Enquanto o povo venezuelano enfrenta a morte, a fome e a opressão às suas liberdades, há dois partidos portugueses que de forma explícita (PCP) ou ambígua (BE) se recusam a condenar o regime de Maduro e a dar a mão a Guaidó – alicerçando as suas posições no costumeiro bode expiatório do intervencionismo americano. Sim, manifestamente, há muita gente ainda com a cabeça na Guerra Fria. Mas, seja qual for a justificação, o ponto é este: PCP e BE têm posições que, de forma objectiva e por motivos tácticos, atentam contra os valores democráticos da liberdade e da dignidade humana. E isto sem serem alvo de uma veemente censura social, que ponha em causa a sua autoridade moral – ainda para mais sendo estes dois partidos suportes parlamentares do governo. A tolerância atribuída à esquerda portuguesa, em particular a PCP e BE, é indigna de uma democracia madura.
É indigno que, num contexto em que diariamente se alerta para a fragilidade das democracias europeias, se tolere tão levianamente um partido cujo eurodeputado, em entrevista ao Expresso, é incapaz de condenar regimes opressivos e totalitários, como o norte-coreano. E que, confrontado com essa questão, se refugie em respostas ensaiados e ambiguidades, tais como Cuba e Coreia do Norte não serem “democracias avançadas” ou como justificar as suas ditaduras por via das “ingerências no plano externo”. Tal como é indigno confiar a defesa dos valores democráticos a um partido que, perante a actual tentativa de derrubar o regime venezuelano e com o povo nas ruas a pedir liberdade, emite comunicados onde “condena veementemente a nova intentona golpista contra a Venezuela e o seu povo, protagonizada por forças de extrema-direita”, com a inevitável referência à administração norte-americana. O PCP é só um: esta face internacional dos comunistas não é diferente da sua face nacional – e conhecê-la é particularmente relevante para avaliar a sua (falta de) devoção aos pilares da democracia representativa.
É também indigno que os principais dirigentes do BE entoem cânticos nos quais apelam à morte de um adversário político e actual chefe de Estado – eleito em eleições livres e democráticas. E, ainda mais indigno, que o façam em plena celebração do 25 de Abril, da democracia e da liberdade política. Os bloquistas podem arrumar o episódio na gaveta das brincadeiras e das piadas. Ou podem inventar explicações conspirativas – como a agitação das “redes sociais de extrema-direita” – para justificar o facto de terem removido o vídeo que registou a marcha e respectivo cântico. O que não podem é fingir que, por debaixo disso tudo, não habita uma visão violenta e anti-democrática de combate político. Que o assunto tenha ficado em grande medida limitado às redes sociais e que os dirigentes do BE (incluindo Catarina Martins) não tenham sentido sequer a necessidade de fazer um mea culpa é sintoma de uma impunidade sem paralelo entre as democracias mais robustas e saudáveis do Ocidente. Simplesmente, isto não condiz com um escrutínio público exigente e com a elevação que se deve exigir dos nossos representantes políticos.
À direita, esta tolerância não existe – para o bem e para o mal. Acontece mesmo o inverso: vigora um regime de tolerância zero. E há uma razão para que assim seja: à boleia das eleições americanas (Trump), brasileiras (Bolsonaro) e espanholas (Vox), PCP e BE passaram os últimos dois anos a fiscalizar declarações e a policiar os apoios políticos das figuras da direita portuguesa, em busca de qualquer desvio censurável – e qualquer movimentação suspeita foi amplamente escrutinada e disseminada. Aliás, há meses que, com grave dramatização, se escutam vozes destes partidos lançando avisos organizados e absurdos quanto ao surgimento de uma extrema-direita em Portugal, informando o país que o populismo de direita estaria em vias de se erguer e ameaçar as bases do regime democrático – e, consequentemente, que a esquerda seria o abrigo dos democratas. Ora, tirando as fantasias conspirativas e partidárias que encontram fascismo em cada vírgula, é saudável que a comunicação social faça esse escrutínio e que seja exigente para com os representantes políticos da direita portuguesa.
O que não é saudável é a prevalência desta duplicidade de critérios. Não se pode ter como normal que quem branqueia opressão política na Coreia do Norte e justifica miséria e ataques contra a população na Venezuela participe numa maioria parlamentar num país democrático e europeu – sem perguntas e sem indignação geral. Afinal, o escrutínio exigente e a censura social sem reservas têm de ser direccionados contra todos os inimigos da liberdade – venham eles da direita ou da esquerda. Quem procurar partidos extremistas e com atitudes anti-democráticas também tem de olhar para PCP e BE. E enquanto isto não for evidente nem consensual, dificilmente a política portuguesa será um lugar frequentável.