Já passaram perto de 50 anos desde que o então primeiro ministro Pinheiro de Azevedo afirmou, numa varanda da Praça do Comércio, que o povo é sereno. Ao que parece a afirmação do almirante só pecava por defeito. O povo não é sereno, é muito mais do que isso. O povo é manso. Provavelmente para evidenciar a sua grande religiosidade, os portugueses acreditam e levam à letra os salmos bíblicos e acreditam mesmo que bem-aventurados são os mansos porque eles herdarão a terra. (Mateus 5:5)

Se pudesse entrar no pensamento de Patrick “Paddy” Cosgrove, o irlandês co- fundador da Web Summit, que recebe uns milhões do Estado português para organizar em Lisboa um evento de que ninguém no mundo fala ou sequer conhece a existência, descobriria que ele deve pensar que esta é uma terra de parolos, que além de simpáticos são tão generosos para os estrangeiros que até nem se percebe porque querem ser independentes. Numa espécie de quadratura do círculo, os portugueses que participam nisto, com o poder político na dianteira, pagam com o dinheiro público para se exibirem para eles próprios. É o clássico deitar os foguetes e apanhar as canas. Tudo começa no Beato e acaba na baía de Cascais. Não passa desse circuito fechado.

O que extravasa realmente a feira de vaidades parola, e que é mais importante, é a política de natureza discriminatória, nomeadamente fiscal, que vários governos têm seguido nos últimos vinte anos, em claro detrimento do direito à igualdade que os cidadãos nacionais têm de ter face a estrangeiros, para os mesmos actos e os mesmos rendimentos.

Em primeiro lugar há que distinguir benefícios fiscais, que todos os países, até os mais ricos, concedem a investidores estrangeiros que promovem a criação de empresas com critério e estrutura, que trazem emprego, valor acrescentado e desenvolvimento tecnológico. Dure o que durar, só temos razões para ficar satisfeitos com os benefícios fiscais que foram concedidos à Autoeuropa e a alguns outros investimentos similares.

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Outra coisa bem diferente é estimular um processo de quase substituição dos jovens licenciados e profissionais especializados portugueses que vão trabalhar para fora do país, oferecendo a estrangeiros qualificados que venham residir em Portugal condições de tributação de rendimento tão favoráveis que, se também as tivessem, muitos portugueses então ficariam por cá.

Para além do negócio da venda de passaportes portugueses, em troca da compra de um imóvel de 500.000 euros por um estrangeiro, introduz-se agora a figura do “nómada digital”, como se muitos dos portugueses que emigram não fossem eles também nómadas digitais.

Não está em causa a liberdade de circulação e de residência de estrangeiros em Portugal, se mais vierem melhor. Se ganham bons salários nas empresas internacionais para quem trabalham à distância e pretendem viver em Portugal pelo clima e pelo acolhimento, muito bem.

Se os portugueses que, entretanto, saíram do país há mais de cinco anos quiserem voltar, então aí nem existe qualquer problema. São cidadãos nacionais, saem e entram quando pretendem.

Mas o que está a suceder com estas novas medidas de atração de estrangeiros residentes não é isto, mas algo bem diferente e até perverso.

Ao que tudo indica, este novo modelo de “nómada digital”, tenciona adicionar estrangeiros jovens ou de média idade aos reformados já residentes e também convencer alguns portugueses emigrados há mais de cinco anos a regressar. E tudo isto como? Através de borlas fiscais, que não concede aos nacionais nas mesmas situações e a executar as mesmas funções, seja para empresas nacionais ou estrangeiras, que até podem ser as mesmas.

Senão vejamos: Dick, holandês, é empregado de uma companhia europeia como gestor de seguros, por exemplo, na situação hoje comum de trabalho à distância. Pretende deixar a sua casa na Frísia gelada e mudar-se para Castro Marim à beira do Guadiana. Imaginemos que na Holanda aufere 6.000 euros mensais e é aí tributado por uma taxa progressiva que, tal como em Portugal, pode chegar a 45%. Vai continuar a trabalhar à distância para a mesma companhia, mas agora, como nómada digital residente no nosso país, vai ser tributado apenas em 20%, uma taxa normal em Portugal para quem ganha 1.500 Euros. Entretanto Alfredo, um nacional residente em Portugal, que trabalha para a mesma companhia, com as mesmas funções também à distância, já ganha à partida menos que o holandês, porque para o nosso país, nessa companhia, o salário para as mesmas funções é de 4.000 euros. Ora, este trabalhador nacional vai pagar imposto progressivo que pode também chegar a 45%.

Quando se tratar de arrendar uma habitação, claro que com o bónus fiscal que este regime oferece ao colega holandês, este, só com o benefício fiscal, pode arrendar uma casa mesmo por preço especulativo, coisa que o português não pode, porque além de ganhar menos, ainda paga mais imposto por menor rendimento que o seu colega holandês pelo maior.

Se alguém vê nesta medida alguma eficácia (já não falando em equidade e justiça elementar) para a necessidade de reter em Portugal a célebre geração mais qualificada de sempre, então serei eu que seguramente terei de mudar de óculos.