“Tudo me atinge – vejo demais, ouço demais, tudo exige demais de mim.”
Clarice Lispector
As palavras de Clarice Lispector, escritas noutro tempo e noutro contexto, não podiam ser mais certeiras, agora. Leio-as e medito-as, a partir de conversas que tenho tido com pessoas que choram ao telefone, pedindo que as deixe chorar.
Aprendi, nos meus anos de voluntária de cabeceira, em hospitais, a importância de deixar chorar. De jamais dizer “não chore, vai correr tudo bem!”. Muitas vezes não corre bem. E se alguém está a precisar de chorar, é melhor que chore, pois nada é pior que bater com a cabeça e vir logo alguém fazer muitas festas onde mais nos dói, repetindo o estúpido mantra ‘já passou, já passou’. Não só não passa, como ficamos ainda pior perante o disparate de nos quererem consolar agravando a nossa dor.
Validar os sentimentos é importante, diz a ciência. Chamá-los pelos nomes e não fingir que são aquilo que não são é crítico, dizem os comportamentalistas. Tão importante como validá-los e nomeá-los, é aprender a não os discutir. Se alguém se sente triste e desanimado e, apesar da sua tristeza e desânimo, consegue verbalizar o que está a sentir, quem somos nós para dizer que não é bem assim. Ou pior, que não há motivos para se sentir desta ou daquela forma. Discutir sentimentos é tão fútil como discutir gostos. Diria que é ainda mais frívolo.
Volto às palavras de Clarice Lispector porque nesta semana, em que muitos contam já um mês de isolamento, sozinhos em casa, sem poderem abraçar ou tocar em filhos e netos, pais e irmãos, sobrinhos e amigos, aqueles que confiam ao ponto de chorar numa conversa por telefone, dizem a mesma coisa por palavras diferentes. Sentem que sabem demais, que ouvem e leem demais, que tudo os atinge e lhes exige muito para além do que conseguem dar.
É difícil ser ombro quando alguém chora. Custa resistir à tentação do consolo imediato, mas temos que nos abster de dizer banalidades como “deixa de ver telejornais e de ler notícias”. E é extraordinariamente arriscado desatar a fazer comparações e relativizações. De nada serve dizer a alguém, no auge do seu desalento, que há pessoas a passar por mais dificuldades, que esta ou aquela família estão muito pior, que há quem chore os seus mortos sem os poder acompanhar até ao fim, que uns e outros perderam os empregos e em breve vão perder também as suas casas, que os médicos e os enfermeiros são os que mais sofrem depois dos próprios doentes, e por aí fora. Não adianta. Quando alguém precisa de chorar, a nossa obrigação é deixar chorar. Primeiro, isso, porque nada é mais consolador e pacificador que isso. Só depois poderemos fazer um esforço para tentar acrescentar outras perspetivas.
E aí já não são as palavras de Clarice Lispector que fazem eco em mim, mas as de outro autor. Penso numa das mais famosas citações de um filósofo igualmente famoso, que felizmente eramos obrigados a estudar nos anos de liceu.
“Aquele que tem uma razão para viver pode suportar quase tudo”.
Nietzsche
Se, por um lado, tudo neste tempo nos atinge e exige demais de cada um de nós, por outro, teremos sempre a capacidade de procurar, e encontrar, um novo sentido para a nossa vida. E aquele que tem uma razão para viver pode suportar quase tudo, de facto. A história, a literatura, o cinema, as artes e as ciências estão povoados de exemplos concretos, de pessoas reais que foram capazes de viver o invivível, de se superar e elevar acima das circunstâncias, de sobreviver a guerras, holocaustos e catástrofes naturais, de se lançar para o espaço e explorar o universo, de atravessar realidades inconcebíveis.
Um dos maiores testemunhos de sempre foi dado pelo austríaco Viktor E. Frankl, médico neurologista, com doutoramento em Psiquiatria que, ainda muito jovem desenvolveu um programa pioneiro junto dos estudantes de Viena, reduzindo a zero a taxa de suicídios. A sua brilhante carreira foi brutalmente interrompida pelo regime nazi que o deportou, primeiro para um gueto e depois para Auschwitz. Frankl sobreviveu não a um, mas a quatro campos de concentração. Podia ter ficado para sempre destruído por tudo o que passou, por ter perdido a mulher e todos os que amava, mas no fim da guerra retomou o seu trabalho e inaugurou até uma nova abordagem terapêutica: a Logoterapia e Análise Existencial, fundamentada empiricamente no sentido da vida.
Viktor E. Frankl escreveu um dos livros mais importantes do nosso tempo e devia ser obrigatório ler “O Homem em Busca de Um Sentido”. O testemunho de Frankl muda a nossa vida e desperta a nossa consciência relativamente ao sofrimento e à incerteza. Ou melhor, relativamente à maneira como podemos sobreviver a um e lidar com a outra. O relato de Frankl, um dos mais lidos de sempre, faz um eco especial neste tempo de pandemia e quarentena. No confinamento desumano a que foram sujeitos os prisioneiros dos campos de concentração, onde eram espancados e obrigados a trabalhar até morrer, privados de sono e de comida, todos mantidos em condições miseráveis, muitos morreram porque perderam a esperança.
Os que desistiram de viver, conta Viktor E. Frankl, foram os primeiros a morrer. Morreram menos por falta de comida e medicamentos do que por falta de esperança. Faltava-lhes alguma coisa por que viver. “Em contraste, Frankl manteve-se vivo e manteve viva a esperança invocando pensamentos sobre a mulher e sobre a perspetiva de voltar a vê-la”, escreve Harold S. Kushner, rabi emérito no Templo de Israel em Natick, Massachusetts, também ele escritor de best-sellers.
Claro que morreram nos crematórios muitos dos que queriam acima de tudo viver e desejavam desesperadamente voltar a reencontrar os seus, mas o foco de Frankl não é saber porque é que a maioria dos prisioneiros morreu. O que sempre interessou ao médico austríaco foi perceber as razões pelas quais alguns prisioneiros, como ele, sobreviveram.
Em 1945, quando escreveu o livro (em 9 dias!), pensou publicá-lo de forma anónima, para evitar que um eventual sucesso lhe trouxesse fama literária. Frankl não queria fama, mas apenas sublinhar que “a vida tem um significado potencial em quaisquer condições, mesmo nas mais infelizes”. Percebeu que este seu argumento tinha que ser demonstrado a partir de situações tão extremas como as que se vivem um campo de concentração e, por isso, sentiu-se responsável por escrever aquilo por que ele próprio tinha passado nos campos de concentração onde esteve prisioneiro.
“Pensei que poderia ser útil a pessoas com tendência para o desespero”.
E foi. E continua a ser. Muitos milhões de cópias continuam a ser vendidas e lidas nos dias de hoje e o pequeno-grande livro de Frankl tornou-se uma obra de referência para a humanidade. Apetece voltar a ele nestes tempos de incerteza e desânimo, nesta altura de quarentena e privação, em que a ansiedade provocada pelas notícias e pela contagem de mortos e infetados aumenta em cada dia.
Li, reli, sublinhei e anotei o livro de Frankl há muitos anos e, desde então, tenho-o pousado na minha secretária, mesmo à mão. Aconselho-o a todos os meus alunos e incluo-o invariavelmente na bibliografia da cadeira, semestre após semestre. Na semana passada ouvi Milton de Sousa, meu colega na universidade, investigador nas áreas de Liderança pelo Serviço, Inovação, Purpose, Mudança nas Organizações e Sistemas Adaptativos nas empresas (resumo pobre e grosseiro da sua imensa área de expertise e influência), citar Frankl no seu webinar sobre a possibilidade de escolhermos entre o ‘Sentido e a Felicidade’.
Aconselho vivamente este webinar e aconselho-o por ser uma combinação perfeita de pensamento académico-científico, com pistas práticas para a vida do dia a dia. E termino com um sublinhado que é do Milton de Sousa: não se trata de encontrar o sentido da vida, pois essa é uma questão filosófico-existencial que nos levaria muito longe do ponto de vista humano, intelectual, científico e espiritual, mas não nos dá a resposta de que precisamos agora, quando esperamos que a nossa vida volte a fazer sentido. Ou seja, não se trata de saber qual o sentido da vida, mas sim como podemos construir um novo sentido para a nossa vida. Como podemos voltar a experimentar que a vida tem sentido, coerência e propósito.
E concluo, rente às conclusões de Milton: num tempo que perdeu coerência e nada é como era porque todas as rotinas se alteraram e não sabemos como será daqui para a frente; numa altura em que o propósito de cada um ficou menos evidente e muita coisa perdeu o seu significado, a única saída é buscar um novo sentido para a nossa vida.