A mudança do governo nos Açores foi o mais importante acontecimento político desde 2015. De repente, quando todos já davam por adquirido um terceiro governo de António Costa, a iniciar em 2023, eis que se abre um caminho para a alternância de poder em Portugal. É natural que António Costa, entre pedidos de apoio a Viktor Orban em Budapeste e a Jerónimo de Sousa em Lisboa, se tivesse lembrado, à falta de melhor, de agarrar em André Ventura para traçar “linhas vermelhas” contra uma possível tentativa de o extrair de São Bento: que ninguém se lembrasse, para governar, de arranjar apoios “anti-democráticos”. A maior parte das pessoas, como não podia deixar de ser, riu saudavelmente. Houve quem, porém, fizesse suas as dores de Costa: foi o caso da amálgama de assinantes do manifesto da “direita democrática”, aparentemente muito empenhados, em nome de princípios que julgam ser só seus, em transformar a primeira derrota da esquerda desde 2015 em mais uma derrota da direita.
A falta de seriedade de tudo isto é por demais evidente. De António Costa não é preciso falar. Mas o manifesto talvez justifique duas palavras. Não faz sentido, bem sei, dar-lhe excessiva importância: trata-se de uma intriga partidária, promovida pelas facções derrotadas no PSD e sobretudo no CDS, mal diluídas no meio de gente talvez mais ou menos distraída. Com Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos aconchegados pelo sucesso açoriano, não lhes ocorreu ideia mais brilhante senão papaguear confusamente as acusações mais torpes com que a esquerda habitualmente demoniza os seus adversários. Da confusão, aliás, deduz-se que vislumbraram os riscos da posição falsa em que se meteram. Por isso, avançam e recuam, dizem e contradizem-se, num texto em que há de tudo menos a “clareza” que se permitem exigir aos outros. Mas nada disto é inédito. Em 1979, também Sá Carneiro foi acusado pelos seus rivais no PSD de, com a AD, dar a mão à “extrema-direita”. Deve-se dizer que a “extrema direita”, para quem não sabe ou já não se lembre, era então representada pelo professor Freitas do Amaral. Enfim, cada época tem o Hitler possível.
Até aqui, o abaixo-assinado faz parte da história do costume. Acontece que o momento da publicação foi particularmente infeliz. A lista de nomes da direita boa, a única que não pactua com o fascismo, saiu quando, nos EUA, a extrema esquerda americana, mais alguns excitados never-trumpers, como Jennifer Rubin do Washington Post, exigem listas negras de todos os que estiveram com Trump, a fim de lhes ser para sempre negado o acesso à imprensa, à universidade e à vida pública em geral. Neste contexto, a lista de nomes da “direita democrática” adquire um sentido um pouco mais sinistro. Serve, para a esquerda interessada em caçar bruxas, como uma espécie de lista negra ao contrário – uma lista branca, que, através das ausências, faz a lista negra dos que, à direita, não compararam Trump a Hitler ou aceitam acordos parlamentares com o Chega. É a lista do denunciante tímido: perguntado pelo polícia de esquerda quem, no seu bairro, são os fascistas, responde que não vai dizer os nomes dos fascistas, mas apenas os nomes dos que não são fascistas. Para o polícia, claro, é a mesma coisa. Não era essa a intenção? Há coisas que são o que são, independentemente das intenções. Por isso, lamento, mas este abaixo-assinado merece figurar na vitrine dos grandes passos em falso, ao lado do manifesto de Julho contra o livro de Riccardo Marchi.
Vamos entender-nos. A razão pela qual o PSD e o CDS, para governarem, têm todo o direito de contarem com o voto do Chega não é apenas porque o PS, para governar, conta com os votos do PCP e do BE. É porque o Chega não é – nem os manifestantes da lista branca, aliás, o afirmam claramente — um partido anti-democrático, nem uma ameaça à democracia. André Ventura quer uma “IV República”, mas reconhece no 25 de Abril um “acto de libertação”. Vale o que vale, claro. Mas o Chega não se propõe derrubar as instituições representativas e o Estado de Direito, nem defende a violência como meio de atingir os seus fins. O Chega é um partido populista e nacionalista, e é preciso alguma má fé ou ignorância para o amalgamar com partidos fascistas. Algumas das suas atitudes ou propostas são repelentes para muita gente? Também algumas das atitudes e propostas do PCP ou do BE o são. Mas temos de ser justos: o Chega nem sequer está no mesmo plano do PCP e do BE, para quem ditaduras como a da Coreia do Norte ou da Venezuela são os regimes ideais. Mais: o Chega não dirigiu nenhuma campanha para impedir a democracia em Portugal, como o PCP e os antecessores do BE fizeram em 1974-1975. Depois de derrotados, comunistas e neo-comunistas renunciaram à tomada violenta do poder. Foram, nessa condição, aceites na vida pública. O mesmo critério – que já foi o de Fontes Pereira de Melo no século XIX (há acções ilegais, mas não há ideias proibidas) — deve servir para todos os partidos.
Aceitar que certos partidos participem na vida pública, desde que respeitem a legalidade, não é, porém, o mesmo que aceitá-los como parte de governos ou de apoios a governos. Como é óbvio, isso já não deve depender da lei, mas das forças políticas. Até 2015, em Portugal, existiu um “arco da governação”, isto é, um entendimento entre o PS, o PSD e o CDS de que só eles, os partidos que apoiaram o Grupo dos Nove em 1975, a integração europeia em 1977 e as revisões constitucionais de 1982 e 1989 podiam governar. Foi António Costa quem pôs termo à tradição, quando percebeu que o PS, com a divisão dos votos à esquerda, nunca mais poderia governar em Portugal contando apenas com os seus deputados. Ora, PSD e CDS estão na mesma situação. Jamais chegarão ao governo se excluírem o eventual apoio da Iniciativa Liberal por ser demasiado “liberal” ou do Chega por ser demasiado “populista”. Se o fizessem, estariam a entregar indefinidamente o poder ao PS, mesmo quando a direita estivesse em maioria no parlamento. Seria condenar à menoridade política pelo menos metade do país. E esse absurdo, mais do que o voto de um deputado do Chega, é que é daquelas coisas que, para além de desacreditar a direita partidária, talvez comprometesse o regime. Porque quem pode subverter a democracia é quem está no poder há vinte e cinco anos, colonizando o Estado, segmentando a sociedade e arrumando quem quer que os incomode na devida lista negra.