Existem dois tipos de textos sobre o Natal: o moralista e o moralista que recusa veementemente qualquer moralismo. Aqui, logicamente, praticamos os dois. Mas o leitor pode estar a perguntar: não é demasiado cedo para um texto sobre o Natal? Ora, a julgar pela quantidade de iluminações alusivas à quadra que foram inauguradas em pleno novembro, não. Aliás, escrever sobre o Natal, nesta altura, acaba por estar em linha com a mais recente moda das empresas: marcar jantares de Natal em outubro ou em novembro, porque em dezembro já está tudo cheio e é tudo mais caro.
Voltando ao tema: infelizmente, o investimento na instalação atempada de luzes de Natal tem sido alvo das mais injustas e pérfidas críticas. Costuma-se dizer que falta um desígnio a Portugal, mas quando as diversas autarquias procuram oferecer aos cidadãos os mais diversificados efeitos luminosos, são acusadas de megalomania. A incoerência não tem limites.
Aliás, trata-se de algo que mostra, e bem, como a política portuguesa deixa uma herança cultural fortíssima. Ao que tudo indica, numa reunião de preparação da Expo 98, António Guterres terá perguntado: “E as tomadas. Já trataram das tomadas?”. Ora, a julgar pela quantidade de iluminações de Natal existentes no nosso país é possível concluir que os presentes nessa reunião tomaram de tal maneira boa nota da preocupação do então primeiro-ministro, que muniram Portugal de tomadas em excesso. Porque se o Natal é uma altura de luz, que ao menos seja de luz elétrica, que é aquela que dá mais jeito.
Há, também, quem diga que se trata de uma despesa ofensiva, acenando com o facto de, em 2023, Portugal ter tido a percentagem mais alta da União Europeia em pobreza energética. Na verdade, nada de mais errado. O que as autarquias fazem é investimento social. Por um lado, proporcionam luzes de Natal em quantidade tal que, perto delas, os cidadãos se sentem debaixo do mais tórrido sol de verão. Por outro, retiram os cidadãos do seu isolamento e fornecem uma prestigiada forma de convívio social, geralmente acompanhada de momentos musicais. É estado social e cultura ao mesmo tempo. Nem o SNS presta tais serviços.
Eu sei o que o leitor está a pensar. “Lá está, de novo, o Clero a ser desmancha-prazeres e a impor um puritanismo sanguinário. Nós também precisamos de sinais exteriores”. Ora, trata-se de uma acusação injusta. Eu também acredito que necessitamos de sinais exteriores, os meus gostos é que são diferentes. Em geral, considero fundamentais outros tipos de exterioridades, como o salário, a alimentação, a habitação digna e a segurança. São prioridades. Mas, infelizmente, os meus concidadãos têm tido opções eleitorais que valorizam melhores luzes de Natal, em vez de melhores salários, e eu sujeito-me à vontade popular. “Oh sr. padre, mas já Jesus disse que nem só de pão vive o Homem”. Certo, e bem sei da elevação espiritual dos portugueses, mas também não é preciso viver só de metafísica.
É verdade que tudo o que envolve o Natal tem surgido cada vez mais cedo, e isso causa natural enfado, mas quando Jesus nasceu, Belém já lá estava prazenteiramente edificada sob umas edificações geológicas de estabilidade pouco confiável, pelo que não sei, até que ponto, nos devíamos exasperar excessivamente com isto. A questão é saber se sobra espaço para alguma expectativa.
Neste quadro, tem-se criticado muito um certo afastamento da figura de Jesus do centro das festividades, o que não deixa de ser altamente compreensível e, até, desejável. Cristo é uma pessoa que nem em 2024 sabe nascer em condições. E já tinha idade para isso. O Novo Testamento que, aliás, a olhar pelo top de vendas das livrarias portuguesas é um best-seller, não relata qualquer chá da revelação. Em vez disso, conta que um anjo foi ter com Maria a anunciar, sem qualquer suspense, que iria ser mãe de um menino. (A pobre mulher de Nazaré nem teve direito a um daqueles bolos cuja cor do interior revela o sexo no bebé. Nem a um lançamento de pirotecnia com cores alusivas ao momento). Para não falar no Baby Shower. Ainda esta semana percorri algumas listas de pedidos feitos para a ocasião e em nenhuma se pedia ouro, incenso e mirra. A única coisa que há de paralelo entre a maternidade de hoje e a do séc. I é a tendência de dar à luz em lugares exóticos. No caso de Maria foi num estábulo, hoje em dia há partos dentro de piscinas.
Sobre o Pai Natal, estranho é que ele ainda não tenha sido alvo da cultura de cancelamento. Para todos os efeitos trata-se de um homem, que passa todo o ano a descansar, enquanto pobres duendes sem sindicato elaboram brinquedos que ele distribui durante uma só noite, o que indica que, dado que o modo de envio é urgente e apressado, que não será muito sensível aos problemas ambientais. Aliás, ainda recentemente, na cimeira de Baku, existiram críticas ferozes aos países mais poluentes do mundo pela sua incúria no combate às alterações climáticas, mas ninguém coloca o dedo na ferida e denuncia que o Pai Natal que, longe de ser um velhinho fofinho, é um monopolista, que se recusa a fazer reciclagem – na medida em que todos os anos há um brinquedo novo para cada criança, sem qualquer preocupação pela sustentabilidade – e que consegue o seu protagonismo através da exploração de trabalhadores e de animais. Realmente, a falta que nos faz Vasco Granja para nos livrar destas más influências. Se calhar, se ainda o tivéssemos entre nós, não haveria nenhuma destas indecências.