1 Estava prevenida mas logo minutos depois percebi que nunca teria havido prevenção possível. A manhã da passada segunda feira foi uma das piores na minha vida e não só por motivos confessionais. Vivi-a sozinha, calhou, mas talvez fosse melhor assim. A convocação “daquela” memória que ocorreu no palco da Gulbenkian, não era partilhável. A sordidez não se conversa e menos se partilha. A Comissão encarregue do relatório sobre os abusos sexuais cometidos por membros da Igreja contra menores à sua guarda não poupou detalhes, não escamoteou pormenores. Escancarou uma história. Tarde, acusam. Mais vale tarde: está contada. Mesmo que parcialmente. (Não vale a pena pensar que se encontrariam todas as vitimas ou que todas elas quisessem contar, e contar-se. Isso nunca ocorreria. Muitas delas preferiram sofrer solitariamente e silenciosamente este cume de vexame que nos autoriza a pensar como tudo foi – e lhes foi – ainda mais insuportavelmente doloroso.)

2 Acredito no mea culpa – como belamente titulava o Público ontem – mesmo que tardio e insuficiente – porque talvez não haja “suficiência” que colmate o que ficamos a saber. E face ao que ficámos a saber, o pedido de desculpas não pode de todo ser meramente retórico como a própria hierarquia já o reconheceu. Palavras leva-as o vento. Muita coisa se seguirá, nada voltará a ser o que foi pela simples razão de que é impossível que volte. Digo-o com a certeza possível que fundamento na consciencialização adquirida pela própria Igreja face a este tremor de terra (enganei-me ou ela própria ficou surpreendida com o grau do abalo?). Fundamento-a na sinceridade constrangida e aflita do mea culpa que ouvi da Igreja, indesligável da sua anunciada decisão de agir e intervir nas diversas frentes de batalha abertas pela revelação feita ao país e à comunidades de crentes e não crentes que somos. Intervindo drasticamente, celeremente. E de um ponto de vista agora confessional, fundamento-a no maior dos maiores valores cristãos que conheço que é o amor e em seu nome, a misericórdia. (Não foi por acaso, muito pelo contrário, que Pedro Stretch, presidente da Comissão Independente responsável por este estudo, terminou a sua intervenção na Gulbenkian citando uma carta de S. Paulo que tratava do amor). Acredito enfim que a terrível revelação que nos fizeram há dois dias será resolutamente apreendida como o ponto de partida para que amanhã seja imperativamente outro dia e não um caso meramente esclarecido através de um relatório entregue. Só uma coisa nos deve interpelar agora, crentes e não crentes: o consolo às vitimas através de um eloquente, nacional e generoso pedido de perdão, a certeza do afastamento célere dos prevaricadores, um cuidado e uma atenção sem limite face a ofensas à dignidade e à vida como as que ocorreram desde há décadas em Portugal. (Sim no mundo também, em todo o lado, mas eu não vivo “em todo lado”. Sou daqui).

Isto dito, deixo registo da minha recusa em entrar no circuito – já em alta velocidade – de sarcásticos cepticismos, antecipações catastróficas, oportunas descontextualizações sobre o que foi sabido e dito. A história já é obscenamente devastadora: não precisa da ajuda da má fá militante nem do serviço dos soldados da guerra contra a Igreja sempre disponíveis e logo em sentido. Contra a corrente? Paciência: estou mais que habituada a ser impopular, treino diariamente.

3 A Igreja foi a primeira instituição social portuguesa a ter esta iniciativa. Saudemos isso. A nomear uma comissão, dar toda a liberdade de escolha de formação de uma equipa – e do resto – ao seu presidente Pedro Strech; disponibilizar-lhe os arquivos – gesto raríssimo entre nós – e financiá-la.

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Louve-se a dignidade, retenha-se a seriedade do trabalho da Comissão.

Repito: insiste-se muito no “tarde e a más horas” da intervenção da Igreja. Não julgo que a diferença de quatro, cinco anos minorasse significativamente o flagelo e o desastre, antes lamento o círculo (ainda) por vezes semifechado onde a Igreja (ainda) se move, aconchegada entre paredes algumas opacas e os seus altos dignatários. Mais dentro que “em saída” como tanto pede Francisco, o Papa.

Reconhecendo tudo isso, trabalho há anos com a Igreja – em Lisboa e em Óbidos –, colaboro por vezes com a própria hierarquia nalgumas iniciativas. Nunca porém precisei de ser anticlerical e mesmo quando discordo e me preocupo, não quero vingar nada. Sabendo, reconhecendo, lamentando tantas e tantas marés baixas – algumas negras, como bem sabemos – a Igreja aí está e aqui continua, dois mil anos depois. Nunca desistirei dela. O que me deixa perplexa é que o desejo de vingança contra a instituição tenha por aí tanto êxito e que o insulto à sua hierarquia esteja diariamente emoldurado em glória. E ambos – vingança e insulto – mais que nunca na montra da media. Ampliados.

4 Julgo que foram pelo menos quatro ou cinco vezes que se ouviu Daniel Sampaio anteontem na apresentação do relatório da Comissão na Gulbenkian, ter uma intervenção decisiva: com a autoridade e o conhecimento que lhe advém da profissão que exerce pediu: “olhem para o resto”. Ele não nomeou mas o resto é a doença da pedofilia a grassar em números avassaladores. Não já na Igreja (sector onde ocorre em muito menor percentagem) mas no seio da família, ou no desporto, para dar dois exemplos, infelizmente verdadeiros. Na entrevista que tive a honra de lhe fazer, no verão passado, o Papa Francisco depois de com rara veemência ter condenado a pedofilia na Igreja, foi de moto próprio direito ao “resto” do assunto. Fê-lo com detalhe, usou de tempo, foi quase lancinante ouvi-lo falar sobretudo da pedofilia no seio das famílias e no silêncio escondido que continua a envolvê-las.

A propósito disto mesmo e conscientes disto mesmo – conscientes do papel que também cabe ao Estado na atenção desse fenómeno perturbado e doentio – deixo duas breves notas que li algures de André Azevedo Alves e Bruno Cardoso Reis, ambos meus colegas nesta “casa”. Retive-as por apreciar a lucidez, a seriedade mas também a serenidade dos seus autores face ao momento que se vive:

Escrevia o André: (o trabalho apresentado pela Comissão nomeada pela Igreja) “deve ser o primeiro passo de um longo caminho a percorrer sobre abusos sexuais dentro e fora da igreja”. Sublinhado meu: dentro e fora da igreja.

E escrevia Bruno Cardoso Reis: “Seria sobretudo bom que o Estado seguisse este bom exemplo e organizasse o seu próprio inquérito ao fenómeno nas instituições do Estado com características semelhantes (internatos e escolas). E ainda a forma como o Estado lida e previne abusos na família que serão os mais frequentes”.

É longo o caminho a percorrer. Tanto caminho.