Há jovialidade antiquada em dizer que uma pessoa que matou o pai é um assassino. Em matérias de crime, o uso actual parece ser porém o de referir suspeitos de parricídio por meios reticentes. A pessoa que se acredita que matou o pai é assim também conhecida por ‘alegado assassino’. A palavra ‘alegado’ sugere profundidade, mas não se percebe bem.

Quando dizemos que uma pessoa que matou o pai é um assassino queremos dizer que é nossa convicção que a pessoa de que estamos a falar matou o pai; e que quem mata o pai é um assassino. As nossas convicções são muitas vezes afectadas por aquilo que ouvimos ou lemos. Podem ser certas ou erradas, e muitas vezes pagamos com embaraço, vergonha ou dinheiro convicções que tivemos, especialmente se as exprimimos em público. Uma sentença de um tribunal pode afectar, mas também pode não afectar, as nossas convicções. E, claro está, as nossas convicções de civis não são uma boa maneira de mandar os outros para a prisão ou de nos livrarmos deles.

O conhecimento jurídico na perspectiva do utilizador é um bem abundante. Como cada vez mais civis, e aliás mesmo juristas, o demonstram sem rebuço, haverá sempre à mão quem nos explique com intensidade apaixonada que ninguém ou nada realmente é coisa nenhuma (vz. um assassino, um pedófilo, uma vítima), pelo menos até uma qualquer outra coisa ter acontecido – e essa coisa é que é linda. Tal será, suponho, o significado aproximado da igualmente opaca expressão portuguesa, que em mim evoca uma ideia difusa de veículos pesados, “ter transitado em julgado.” Como, por razões jurídicas e até filosóficas, a qualquer coisa raras vezes acontece essa felicidade, há licença para usar o título honorífico ‘alegado’ a respeito de tudo e para sempre (‘Bruto, o alegado assassino de Júlio César’, ‘Abel, alegada vítima de Caim,’ ou mesmo, nas palavras do Vate, ‘Vi alegadamente visto’).

Estes usos de ‘alegado’ não se devem a um amor entranhado por direitos e garantias. Mostram antes afeição por pessoas conhecidas do grande público, um certo medo da justiça e, sobretudo, respeito irrazoável pela possibilidade de nada ser como acreditamos que de facto é. Estou no entanto em posição de sossegar os utentes. Em relação às pessoas conhecidas, normalmente não as conhecemos. Em relação à justiça, sendo as coisas como são, nada indica que nos tenhamos de preocupar tão cedo. Em relação à possibilidade de nada ser como acreditamos que de facto é, ao acreditarmos nela deixamos de a tomar a sério. É por isso uma possibilidade em que não adianta acreditar. Em qualquer caso, ‘alegado’ não serve para nada; e ‘assassino’ não será má palavra para descrever uma pessoa que, tanto quanto se pode acreditar, matou o pai.

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