A “Carta aos Europeus” do Presidente Macron não terá merecido a atenção que o autor desejaria por parte dos destinatários. E é pena, por várias razões. Antes de mais, porque é um contributo estimulante para o debate europeu — que tem sido pobre e monocórdico. Fundamentalmente, em meu entender, a Carta de Macron é importante porque revela o equívoco fundamental que ameaça o projecto europeu: o estéril conflito entre Antigo Regime e Revolução, para usar a consagrada expressão de Alexis de Tocqueville.

Vários autores puseram em evidência, a meu ver certeiramente, a natureza dirigista e centralista das ideias propostas pelo Presidente francês. José Manuel Fernandes criticou vigorosamente neste jornal a ideia peregrina de criar “censores europeus” para “proteger as democracias nacionais” das “fake news” das redes sociais. A eurocéptica revista britânica The Spectator condenou o “dirigismo económico” de Macron. Numa convergência rara nos dias que correm, também a europeísta revista britânica The Economist condenou o “dirigismo económico” de Macron, num editorial certeiramente intitulado “L’Europe c’est moi”.

Subscrevo todas essas críticas ao tom dirigista, centralista e federalista da carta do Presidente francês. Mas receio que o problema possa ser ainda mais fundo e mais grave.

O Presidente Macron apresenta as suas propostas centralistas como as únicas que exprimem a causa da União Europeia contra os seus inimigos — que ele designa como populistas, nacionalistas e xenófobos. Por outras palavras, está subjacente ao argumento do Presidente francês que quem discorda das suas propostas centralizadoras estará necessariamente ao lado do populismo e contra a União Europeia. Este é um equívoco crucial que não deve passar sem reparo.

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Deve primeiramente ser observado que esse tom em regra não existe no debate pluralista no interior das democracias parlamentares nacionais. Aqui estamos habituados a ter vários (pelo menos dois) partidos democráticos com posições rivais. E não é costume que um deles apresente as suas propostas como defensoras exclusivas da democracia parlamentar, acusando o outro partido de ser contra a democracia parlamentar.

Na verdade, este hábito saudável e civilizado de não ostracizar o partido rival revela um elemento fundamental das democracias parlamentares nacionais: todas elas se fundam num diálogo e concorrência permanentes entre pelo menos dois partidos rivais. Em regra, as democracias nacionais têm, de um lado, um partido que é mais favorável à intervenção do Estado e, do outro, um partido que é mais favorável à iniciativa privada descentralizada. Podemos naturalmente preferir uma ou outra inclinação, ou até mudar a nossa preferência consoante as circunstâncias. Mas ninguém se lembraria de dizer que a democracia é apenas intervenção do Estado ou apenas iniciativa privada.

Ora é precisamente o contrário disso que está a acontecer na União Europeia. Em vez de termos uma saudável concorrência entre visões europeístas rivais — umas mais centralizadoras e supra-nacionais, outras mais descentralizadoras e mais favoráveis aos Parlamentos nacionais — estamos a ter a identificação da União Europeia com uma única inclinação: aquilo que, na “bolha de Bruxelas” é conhecido como “Mais Europa”, isto é, mais integração supranacional.

O resultado está à vista e era há muito previsível: o crescimento eleitoral de partidos radicais anti-europeístas. Se os partidos centrais não dão voz a preferências descentralizadoras, é apenas natural que essas preferências vão exprimir-se na votação nos únicos partidos que dão voz a essas preferências: os partidos radicais, em regra anti-europeístas.

Esta “dicotomia infeliz” (para usar uma expressão de Ralf Dahrendorf) não é nova na política europeia. Alexis de Tocqueville foi seguramente um dos autores mais atormentados pela recorrência de dicotomias infelizes na cultura política continental e do seu país natal. Chamou-lhes “estéril conflito entre Antigo Regime e Revolução”, ou “perpétua oscilação entre a servidão e o abuso”.

Não é aqui o lugar para recordar as profundas origens intelectuais que Tocqueville detectou para a recorrência destas infelizes dicotomias na cultura política continental. Mas, muito brevemente, tenho de recordar que ele salientou que a democracia liberal, por contraste com o conflito entre Antigo Regime e Revolução, não é acerca de propósitos ou objectivos substantivos a serem alcançados. É acerca de regras do jogo imparciais a serem observadas.