Desde o final do Antigo Regime, em 1834, Portugal apenas teve um regime e um governo de direita durante os quarenta anos do Estado Novo, de 1933 a 1974. É sem dúvida uma das nossas originalidades. Mais do que isso, é um enigmático paradoxo da nossa história. Pelo menos à primeira vista.
Durante o século XIX, o país católico, supersticiosamente católico e inveteradamente conservador, sobreviveu a uma elite que décadas e décadas a fio o governou com os olhos postos no Progresso. Progresso material e progresso cultural. Fora de Lisboa e talvez do Porto, uma população rústica, primitiva, analfabeta e geralmente miserável ignorava em absoluto o que fosse a Bélgica, que os nossos políticos e publicistas exaltavam como modelo de desenvolvimento, e, repetindo rotinas seculares, não fazia a mais leve ideia do que fosse o “progresso material”. Por razões óbvias, a noção mesma de “progresso cultural” era-lhe possivelmente ainda mais estranha do que a hipotética existência de marcianos. Os padres e os frades, as igrejas e os conventos, as missas, as novenas, as cruzes, as bênçãos, as confissões e as penitências constituíam no dia a dia as referências palpáveis de um universo moral sustentado pela inabalável fé em Deus.
A mesma que fundava a crença na existência de um Rei invisível e inacessível mas todo-poderoso, predestinado pela vontade divina para, lá das excelsas alturas onde pairava, presidir ao destino dos simples mortais, que lhe deviam obediência e submissão como parte dos preceitos sagrados que regiam as suas vidas. Em 1832, quando a expedição liberal, chefiada por D. Pedro, arribou ao Porto, vinha, por inverosímil que pareça, animada da convicção de que o povo português acorreria a abraçar os “libertadores”. Herculano, que assistiu ao cerco do Porto que D. Miguel rapidamente montou, recordou mais tarde que pela primeira vez vira então a face da verdadeira Democracia, incarnada nos 80.000 mancebos do exército miguelista. Tinham um aspecto assustador, prontos a morrer pelo Rei absoluto, que idolatravam. Os liberais depressa perceberam o seu isolamento num país afeito ao Antigo Regime, ao qual a Liberdade nada dizia. Durante as invasões francesas, padres e frades lideraram a luta do povo contra os hereges em nome do Rei e da Santa Religião Católica, Apostólica e Romana,
Os liberais decidiram educar o povo. Levaria tempo e era caro. Mas o País acabaria por reconhecer as virtudes e os benefícios da monarquia constitucional e do governo parlamentar. O Estado se encarregaria de mudar hábitos e rotinas, de difundir as Luzes que gradualmente expulsariam a crendice e a superstição, abrindo o caminho à gradual germinação da cidadania e transformando súbditos servis em cidadãos conscienciosos. Com o tempo, a realeza sacralizada, varrida pela sua integração no mundo profano, revelar-se-ia como natureza humana e mortal, revestida embora da autoridade especial atribuída ao primeiro magistrado da nação. São-lhe conservados privilégios e prerrogativas importantes a título de concessão ao monarquismo. Mas a monarquia deixara de ser uma religião. Os novos donos de Portugal nunca duvidaram de que o fim do bom governo residia no bem comum, e não na promoção dos interesses dinásticos do monarca e sua família; e que a observância da Constituição era um valor superior ao dever de obediência pessoal ao rei.
Durante a “ditadura” de D. Pedro, que precedeu o fim da guerra civil e o começo do reinado de D. Maria II (1834), as reformas administrativas, judiciais e agrárias de Mouzinho da Silveira tinham arrasado o Antigo Regime. A abolição dos dízimos, recebidos sobretudo pela Igreja, deixaram esta à mercê do Estado. A funcionarização do clero, agora remunerado pela Secretaria de Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, neutralizou em grande parte o que poderia ter sido um temível foco de resistência. E antes disso já Joaquim António de Aguiar, o “mata-frades”, decretara a nacionalização dos imensos bens dos conventos e mosteiros, deixando o clero regular entregue à caridade voluntária dos fiéis. Estes passos no sentido da laicização do Estado custaram um cisma com o Papado que levou dez anos a resolver, porém tornou-se claro que a summa potestas cabia ao poder temporal.
Poderia a grande aristocracia impor-se como força de direita conservadora, depositária da cultura dinástica, defensora da Religião e guardiã da Tradição? Não podia. Esta direita era nem mais nem menos o miguelismo. Ora este tinha sido militarmente derrotado no final de uma guerra civil de dois anos; e o seu mundo, o mundo do Antigo Regime absolutista, tinha entretanto sucumbido à legislação revolucionária dos ministros de D. Pedro. Para bem o extirpar do solo português, D. Pedro vedou a Câmara dos Pares a todos os Grandes do Reino que tivessem, em 1828, assinado a favor da “usurpação” de D. Miguel. Quando a veneranda Câmara reabriu, em Agosto de 1834, apenas lá se sentou uma dúzia de solitárias criaturas. D.Pedro remediou a coisa nomeando uma “fornada” de pares recrutados entre os homens que mais e melhor o tinham servido, sem olhar a pergaminhos.
A Câmara Alta encheu-se de militares e civis liberais, elevados pelo mérito e não pela herança de um nome. Em não raras ocasiões da história portuguesa oitocentista, o pariato demonstrou-se mais firme na defesa dos direitos e liberdades do que a própria Câmara dos Deputados. E, para não deixar dúvidas sobre as suas convicções liberais, foi da própria Câmara dos Pares que partiu a iniciativa da abolição dos vínculos (ou morgados) em 1863. Em Portugal apenas havia liberais e radicais; todos se queriam progressistas, apenas divergindo quanto ao ritmo, mais rápido ou mais pausado, do Progresso. Em toda a classe política e independentemente da condição social de cada um, contam-se pelos dedos da mão os que se assumiam como conservadores. A classe política era toda ela liberal e progressista, imbuída da cultura republicana, moderadamente católica quando não abertamente anti-clerical e laicista. Mas de um catolicismo depurado pela apropriação cívica de que foi objecto em virtude da tutela que o Estado exercia sobre a Igreja, e que já em nada se parecia com “a religião vencida em 1834” (O. M.) – beata e ultramontana. Esta subsistiu acantonada no país profundo, agarrado aos seus atavismos ancestrais, e alojada mo âmago de um miguelismo expulso da Cidade.
Nada existindo à direita do Partido Liberal, nenhuma força genuinamente conservadora, dinástica e católica à maneira do Antigo Regime, exercia sobre ele uma atracção gravitacional que travasse a sua gradual derrapagem para o campo da esquerda. O verdadeiro conservadorismo – o miguelismo – fora deslegitimado. Só havia licença para ser liberal ou radical/democrata, um eufemismo sob o qual até à década de 70 se disfarçavam os republicanos ou jacobinos. O contraste com a história oitocentista espanhola era total. Em Espanha, o carlismo armado e não armado permaneceu vivo ao longo de todo o século (e ainda pelo século XX adentro). Os “moderados”, como se chamavam os liberais espanhóis, só eram moderados no nome. A existência activa dos carlistas produziu em permanência um efeito de atracção sobre a ala mais à direita do Partido Moderado, aprisionando-a na órbita do conservadorismo puro e duro. A partir de meados da década de cinquenta, impulsionado pelo neo-catolicismo (ultramontano), inicia-se um movimento vigoroso de “recatolização” da Espanha, vista como um antídoto contra a revolução, em que se distinguiu Cândido Nocedal, ministro do “moderado” general Narváez, e ao qual se deve a lei de imprensa mais repressiva da monarquia constitucional espanhola. Antes disso, no rescaldo das revoluções europeias de 1848, outro tradicionalista neo-católico, o deputado e filósofo Juan Doñoso Cortés, publicara o seu famoso Ensaio sobre a ditadura, tendo chegado à conclusão de que “o problema não residia nos governos”, mas no facto de que “os povos se haviam tornado ingovernáveis”…
Tudo isto seria impensável em Portugal, onde, como disse, só havia licença para ser liberal e progressista, de preferência “progressista rápido”, como à época se dizia.
Durante a I República, como é sobejamente sabido até mesmo pelos que afirmam o contrário, às tantas já só havia licença para ser Democrático, ou seja, (Afonso-)Costista.
A primeira experiência republicana acabou como tinha de acabar. Com o Estado Novo fascista (sigo a classificação de Manuel de Lucena), caímos no extremo oposto: só havia licença para ser salazarista. Os 40 anos de Ditadura pura e dura foram como que uma espécie de revanche histórica da direita, estupidamente prolongada até ao ponto de já só restar, para lhe pôr cobro, a via da ruptura revolucionária, desentranhada do que começou por ser um mero pronunciamento militar. Os fascistas “desapareceram” em 1974, tal como os miguelistas tinham “desaparecido” em 1834. Sá Carneiro levou cinco anos a relegitimar a direita, mas uma direita social-democrata, progressista, e tão envergonhada – e fraca – que se prestou a assinar (excepto o CDS) a absurda Constituição de 1976, que pretendia amarrar todo o País, toda a gente, ao rumo para o socialismo sob tutela militar. Após as duas mais importantes revisões constitucionais, 1982 e 1989, continuamos com uma Constituição que consagra um fortíssimo estatismo bem como um sem número de imposições programáticas destinadas a forçar uma orientação governativa socialista. Em Portugal, em 2015, ainda só há licença para ser de esquerda. Não admira. A verdadeira direita, que era a do Estado Novo, não teve, como não teve outrora o miguelismo, a oportunidade histórica de se aggionare – ao contrário da direita franquista em Espanha. Aqui, Franco, desembaraçado da questão colonial, pôde abrir o caminho a Adolfo Suárez, que conduziu uma transição pacífica para um regime democrático em que cabia toda a gente. Em Portugal, a revolução, como sempre acontece, bloqueou toda a possibilidade de diálogo com os vencidos e fechou-lhes as portas do novo regime. Décadas depois de Abril, alguém de direita ainda causa espanto e indignação.
Maria de Fátima Bonifácio é historiadora e professora universitária. Escreveu, entre outros livros, a biografia de D. Maria II da série “Reis de Portugal” (Círculo de Leitores).