O país foi assaltado esta semana duas vezes. O meliante? O Dr. Costa. Os assaltos? Dois: à nossa liberdade e à nossa inteligência. Digo nossa, porque ainda que o país, meio anestesiado, num estado mais comatoso que cochileiro, possa não ter dado conta, fomos nós todos as vítimas desses assaltos.
Primeiro a liberdade, que todos os anos a esquerda gosta de celebrar formalmente no 25 de Abril, para informalmente ignorar durante o resto do ano.
Veio o Dr. Costa anunciar a intenção – entretanto concretizada em Projecto de Lei – de tornar a instalação da aplicação informática (“diz-se app, pai”, dizem-me os meus filhos adolescentes num misto de gozo e exasperação) stayawaycovid obrigatória. Não bastando, ainda anunciou que as forças da ordem, todas sem excepção, teriam poder para o fiscalizar. Nem vou perorar sobre o opróbrio lançado sobre essas mesmas forças da ordem, para o qual os seus representantes sindicais já vieram alertar. Nem vou, tão pouco, tecer grandes considerações sobre o art.º 21.º da Constituição (Socialista) da República Portuguesa.
Dirão os mais sensatos que a saúde pública e o combate à crise pandémica o justifica. As boas intenções foram sempre a raiz da generalidade dos males; a apatia encarregou-se de fazer o resto. É nesta altura que vale a pena recordar, para quem a liberdade ainda é um valor superior, que há uma diferença substantiva entre aquilo que se faz livremente e aquilo que se faz sob coacção. Aliás, só quem não a compreende ou não a valoriza, é que pode dizer o que o Dr. Costa disse: “Teremos de ser tão menos autoritários quanto mais as pessoas aderirem todas. As medidas só são autoritárias se as pessoas não o fizerem já espontaneamente”.
O Dr. Rio, naquela sua proverbial tecnocracia de província, disse que se a app for eficaz tudo bem.
Lembrar neste ponto Hannah Arendt, e que há momentos na vida em que devemos também discernir entre Rule of Law e Rule by the Law, e ainda as tiranias sempre cheias de anónimos que cumprem a lei, talvez não seja inútil: “A triste verdade é que o maior mal é perpetrado por pessoas que nunca se decidiram verdadeiramente entre o bem e o mal.”
No mesmo dia, não por acaso, a notícia de que essas mesmas forças da Lei podiam entrar nas casas dos portugueses sem mandato de captura também marcou a agenda. E aqui, no âmago deste estranho tempo em que a cancel culture quer calar a sabedoria, sobre a limitação do poder do Estado e o respeito pela vida privada de cada um, vale a pena viajar no tempo até ao século XVIII, para relembrarmos Sir William Pitt, Earl of Chatham, Primeiro-ministro britânico entre 1766 e 1768: «O mais humilde dos homens, no seu casebre, pode resistir a todas as forças da coroa. Pode ser frágil, o telhado pode abanar, o vento pode destruir tudo aquilo, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei de Inglaterra não pode!» E, digo eu, muito menos o Dr. Costa.
Dito isto, vamos ao segundo assalto. O segundo assalto foi à inteligência. Lembram-se do que alertei aqui? O Rei do spin, que de Março até hoje não aprendeu nada nem corrigiu nada, não anda a pensar como é que resolve o problema de saúde pública, anda a ver como é que se safa de responsabilidades. Vale a pena sobre isto ler o João Pereira Coutinho no Correio da Manhã de dia 16:
“Passaram 8 meses. A doença ensinou algumas coisas. Primeiro, que há grupos mais vulneráveis do que outros. Segundo, que o SNS não chegava para as encomendas. E, terceiro, que nem todas as regiões eram igualmente afectadas. Perante estas lições, que se esperava de um governo racional? Que protegesse os mais vulneráveis. Que preparasse o SNS para uma segunda vaga. E que adaptasse as medidas restritivas consoante as realidades geográficas. Nada disso foi feito. O ‘estado de calamidade’, que já antecipa o de emergência, volta a aplicar a mesma receita uniforme e medieval ao país inteiro.”
O Dr. Costa não conseguirá, muito provavelmente, vencer esta corrida de obstáculos: Assembleia da República, Presidente República e Tribunal Constitucional. Mas também não sei se está muito empenhado nisso. O que o Dr. Costa quer é, chegados a Novembro ou Dezembro com uma calamidade em mãos, poder libertar um dedo para apontar a quem se lhe opôs.
Mas se julgam que o assalto à inteligência termina aqui, é porque ainda não conhecem verdadeiramente o Dr. Costa. Enquanto isto se discutiu, o que não se discutiu foi o Orçamento de Estado, essa indigência sem ambição que nos vai empobrecer ainda mais no próximo ano. Chapeau, Dr. Costa! O circo em que este país se transformou aplaude o maior ilusionista desde Houdini.
E aqui chegados, pergunta o leitor mais atento: então, e o reaccionário? Ah, esse sou eu. Nelson Rodrigues, o insigne cronista de língua portuguesa, disse: “Sou reacionário. Minha reação é contra tudo que não presta.” Como não lhe fazer companhia?