O Dr. Costa veio esta semana apelar à responsabilidade pessoal de cada português. Todos os portugueses são, segundo o Dr. Costa, responsáveis por controlar a transmissão da Covid-19. Acrescentou ainda que “não podemos estar à espera que as regras sejam definidas. Não podemos estar à espera que seja um polícia a dizer o que devemos fazer. Devemos ser polícias de nós próprios”.

Por outro lado, reconheceu que “o custo social do confinamento foi enorme e [que] não podemos passar por isso tudo outra vez” e como tal “não podemos voltar a parar o país como parámos.” Sobre o ensino disse que “não podemos privar as crianças de ir à escola”, sobre as famílias que “não [as] podemos proibir de visitarem os seus entes queridos nos lares”, e sobre as tradições que “não podemos separar as famílias no Natal”.

Aplaudo. A liberdade, a responsabilização individual, o respeito pela família e pelas tradições, para um liberal conservador, sempre pareceu a via mais sensata de lidar com a vida em sociedade. É claro que, num país tão dependente de “pais protectores” e com uma sociedade tão pouco emancipada, num país onde o apontar o dedo ao outro sempre foi mais compensador que a autorresponsabilização, isso possa ser um passo demasiado grande para tão curtas pernas. E é por isso que os mais sensatos tenderão a contemporizar com o mesmo Dr. Costa que paralisou o país e com ele a economia, o ensino e a vida dos portugueses. Acrescentarão ainda que o confinamento de Março não foi diferente do que se passou na generalidade dos países. E eu, no que a essas tergiversações concerne, até dou isso de barato. Ninguém estava verdadeiramente preparado para lidar com uma pandemia a esta escala; nem a Suécia, que avaliou a estratégia, reconheceu os erros e corrigiu-os, nem Portugal, entretido e inebriado com tonterias inverosímeis como a do “milagre português”.

E foi essa incerteza e desconhecimento que nos conduziu ao reductio ad unun da ocupação sanitária.

Disse ocupação e não preocupação? Não foi lapso. Se fosse preocupação, a ocupação teria sido prévia: o investimento em saúde não teria, num tempo em que nos disseram que a austeridade tinha acabado, diminuído face ao PIB; em Março, antes da primeira morte por Covid-19, quando o Primeiro-Ministro anunciou que estava tudo preparado para o que aí vinha, os médicos não andariam a comprar fatos de pintor para se proteger nas unidades hospitalares; as equipas de rastreio da autoridade de saúde não teriam sido tão pouco dotadas de recursos; e por aí fora foi…

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Mas voltemos às recentes declarações do Dr. Costa, ora aparentemente liberal conservador. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Porquê? Porque já tivemos o Dr. Costa vai na corrente, do fazer tudo como toda a gente, e o Dr. Costa proto-estalinista que proibiu a Páscoa e permitiu o 1º de Maio; que proibiu os festivais de Verão mas permitiu o Avante; que definiu distâncias, circuitos e lotação para as idas à praia dos burgueses e deixou os operários dos subúrbios atolados em comboios sem condições; que fechou o desporto jovem por decreto e “comprou” a final da Champions para o Politburo assistir. Já tivemos até o Dr. Costa aspirante de Churchill – lembram-se daquela inenarrável capa da revista do Expresso? – que está convencido que a história lhe será benévola; Churchill porque a escreveu, Costa porque a encomendou. E ainda o Dr. Costa Remédios – irmão do Diácono – que para combater o coronavírus proíbiu a venda de álcool depois das 20 horas.

O problema, sabemos agora com toda a certeza, é que nada disto faz sentido, porque nada disto é coerente. Não há uma ideia, uma orientação estratégica, sequer uma tendência ideológica na acção do Dr. Costa. Desenganem-se aqueles que acham que o Dr. Costa é um perigoso radical de esquerda que se vendeu aos comunistas do PCP e do Bloco; o Dr. Costa é um homem sem ideologia, entregue à sua sede de poder. É perigoso, mas não é por ser de esquerda, é por ser o Dr. Costa. Se houvesse uma ideia até se podia discordar, mas compreender-se-ia. Mas não há. O que há é a total desresponsabilização política de tudo o que acontece, em favor do seu poder. Quando a tensão aumenta caem todos menos o Dr. Costa. E há sempre alguém a quem apontar o dedo, porquanto o Dr. Costa se vá safando nas sondagens e nos focus group; o  alfa e o ómega da sua escola política.

Têm dúvidas? A culpa é do Passos. A culpa é do calor. A culpa é de quem diz que houve roubo em Tancos. A culpa é dos Holandeses. A culpa é dos Ingleses. A culpa é dos jovens. A culpa é dos médicos cobardes. A culpa é dos responsáveis pelo leak. A culpa é de quem ousar chumbar o Orçamento.

O próximo culpado? O estimado leitor. Entre a espada mortal (para a economia) de um novo confinamento e a parede dos impactos (para a saúde pública) de uma nova vaga, o Dr. Costa olhou à volta e viu-o a si. Só assim se entendem estas últimas declarações de responsabilização pessoal, num cenário que se perspectiva cada vez pior, logo vindo de quem tratou os portugueses com tanta desigualdade. Como já todos foram culpados para salvar o Dr. Costa, o último que falta é mesmo o estimado leitor. Prepare-se.