Ainda não cheguei às maiúsculas, nem creio até que lá chegue, mas tenho-me apanhado a pensar no bem e no mal. Não são, confesso, termos que utilize frequentemente, nem sequer em pensamento. A coisa passa-se diferentemente com “bondade” e “maldade”. Com esses termos sinto-me razoavelmente à-vontade, até porque se colocam no mero plano da psicologia descritiva e não têm ambições metafísicas. São termos necessários ao nosso entendimento das coisas do dia-a-dia (todos nós encontramos na vida exemplos de bondade e de maldade) e podemos usá-los em sentido razoavelmente lato, sem necessidade de definições rigorosas ou de voos especulativos. Podemos até reduzir em parte a bondade e a maldade a outras características mentais. Por exemplo, creio que a maior parte das vezes que fiz algo de “mau”, o fiz por falta de discernimento, ou, se se preferir, por estupidez. E julgo que isso acontece com a maior parte das pessoas.

Em contrapartida, falar, mesmo sem maiúsculas, de bem e de mal requer uma muito maior abstracção. É como se passássemos a lidar com entidades autónomas em relação à nossa experiência que encarnam nos actos – ou, de forma mais profunda, no carácter – dos indivíduos (as maiúsculas enfatizam essa dimensão). Não são, ao contrário de “bondade” ou “maldade”, conceitos puramente descritivos. Designam, em princípio, algo acima destes, algo que produz o carácter dos humanos e o determina de forma unívoca, sem vestígio de equivocidade. Deixo de lado o modo como as religiões pensam estas coisas, e não pretendo falar da maneira como as várias filosofias se referiram aos conceitos de bem e do mal, embora esteja mais à-vontade no que diz respeito a este segundo tipo de maneira de pensar (julgo saber o que são o bem e o mal para Leibniz ou Kant, por exemplo). Fico-me, portanto, por esse traço distintivo muito genérico dos conceitos de bem e de mal: são conceitos muito mais abstractos do que os de bondade e maldade.

Acontece, no entanto, que eles também têm lugar no discurso comum, sem que sejam usados com preocupações religiosas ou filosóficas. As pessoas falam de “bem” e de “mal” correntemente. Não tanto como de “bondade” ou “maldade” – mas falam. Isso deve fazer-nos reflectir. Porque é, de certo modo, o sinal de alguma naturalidade dos conceitos – e, secundariamente, de uma continuidade entre o entendimento comum e o entendimento filosófico. É claro que há diferenças. O bem e o mal, no discurso comum, não aparecem como determinações inequívocas, como em certas tradições filosóficas, mas sim como algo do qual temos uma intuição mais ou menos vaga. Sendo vaga, essa intuição não é, no entanto, menos real, não designa uma mera fantasia do espírito, por mais que ela esteja marcada pelas convenções de cada cultura (nas teorias do contrato social, pela própria passagem do estado de natureza ao estado civil). É nesse sentido, simultaneamente vago e real, de “bem” e de “mal” que me tenho apanhado a pensar. Um sentido “desinflacionado”, como se diz em filosofia.

E tenho-me apanhado a pensar nisto por causa de várias reacções à invasão russa da Ucrânia e de certas analogias históricas que ela evoca. Com efeito, o que menos faltou por estes meses foi gente a defender que nesta guerra não havia bem nem mal, que a única questão em jogo se resumia ao conflito de interesses geoestratégicos e que qualquer outro tipo de considerações era não só irrelevante como voluntariamente encobridora da realidade. Esta doutrina tem sido igualmente partilhada por gente de esquerda e de direita e comunicada em diversos tons, que vão de alguma sofisticação teórica à brutalidade mais declarada, sem que, no essencial, varie grandemente.

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Dou-me, de facto, mal com este entendimento das coisas. Não, obviamente, por julgar que as questões geoestratégicas não se coloquem. Mas porque me parece que tal redução exibe uma cegueira face a várias dimensões essenciais do conflito que, confesso, não parou de me espantar. E em primeiro lugar, obviamente, uma cegueira face à distinção crucial entre agressor e agredido, cegueira essa obtida muitas vezes a custo da inversão de relações causais patentes. Por exemplo: a Rússia limitou-se a reagir a uma provocação ucraniana (ou, genericamente, do Ocidente), o que lhe garante à partida uma dose substancial de inocência. Ou, se quiserem, foi Abel que matou Caim. Essa cegueira é também, e fundamentalmente, uma cegueira face às intuições comuns do bem e do mal. Ela radica talvez naquilo que Kierkegaard chamava a “angústia face ao Bem”, uma angústia que é, em última análise, uma angústia face à liberdade. Mas, seja como for, esta cegueira, que visa uma “explicação” das causas da guerra, elimina qualquer possibilidade da compreensão da guerra.

Porquê? Porque compreender esta guerra implica forçosamente colocar como ponto de base a distinção entre agressor e agredido. A partir do momento em que a distinção é recusada, ou invertida, ou relativizada, a “explicação”, por mais realista que se pretenda, gira no vazio. A cegueira face à distinção entre bem e mal, fundada na distinção entre agredido e agressor – entre Abel e Caim, se se quiser –, é tão mais extraordinária quanto os testemunhos empíricos de tal distinção são inúmeros e as imagens que os revelam, que revelam simultaneamente a derrelicção de uma população atacada e a extraordinária coragem da sua resistência, possuem toda a força de uma indisputável evidência. A estratégia que consiste em negar tal força, colocando-a sob suspeita de “propaganda”, releva da má-fé (da recusa da evidência) ou do cinismo puro e duro, também ele, talvez, uma manifestação da “angústia face ao Bem”, do medo da liberdade. E o medo da liberdade, aqui, é, por via da recusa da distinção entre o bem e o mal, o medo de compreender. Há “explicações” especialmente fabricadas para impedir a compreensão. Uma compreensão que, de facto, só é possível se aceitarmos a distinção entre o bem e o mal.

Mas convém ir mais longe. Dadas as analogias que se podem estabelecer entre o comportamento de Putin e o de Hitler – uma analogia não funciona como uma prova de identidade, mas uma analogia histórica é boa se o passado e o presente colocados em relação se iluminam reciprocamente, o que me parece ser o caso –, era bom perguntarmo-nos qual seria a posição que os negadores da causalidade patente na invasão da Ucrânia adoptariam em 1939? É claro que, sendo as coisas o que são, seria arriscado, além de injusto, declarar taxativamente que seria uma posição a favor de Hitler. Resta que a recusa da distinção entre o bem e o mal – e lembro mais uma vez que uso os termos no sentido das intuições vagas, mas reais, que as pessoas comuns deles têm – nos permite pensar que poderia muito bem ser, de facto, a favor de Hitler. A possibilidade está em aberto. A agressão teria vindo das democracias: não faltou, de resto, gente simpatizante dos nazis para o dizer à época.

Tudo isto para dizer uma coisa. Não são apenas conceitos como os de “bondade” e “maldade”, com a sua função descritiva, que são de legítimo uso em matérias ético-políticas. Os conceitos de “bem” e de “mal”, num seu entendimento desinflacionado, isto é, sem se alçarem a um patamar metafísico, têm uma legitimidade que lhes vem da sua função compreensiva. Não podemos compreender o mundo ético-político, por mais que procuremos evitar o uso de abstracções, sem, em certos casos, a eles recorrermos. Ou, de preferência, a conceitos que a eles indirectamente reenviem – como, por exemplo, o conceito de “monstruoso” – e que mantenham alguma dimensão descritiva. Sublinho: em certos casos. Porque, para além da vasta legião de casos indiferentes, onde só um micrólogo, ocupado com a mínima entidade moral microscópica, buscaria o bem e o mal, o grosso do domínio ético-político passa muito bem sem o uso de tais conceitos.

Há, no entanto, situações que, pela sua própria natureza, os requerem. O caso da invasão da Ucrânia é, sob este aspecto, exemplar. Como seria exemplar, por exemplo, a longa história de monstruosidade que foi, desde Lenine, a da defunta União Soviética e das suas vítimas. Aqueles que inventam explicações que põem tais conceitos entre parêntesis nestas situações cegam-se voluntariamente. Decidiram não compreender. A má-fé – ou, nos casos mais extremos, o cinismo – coloca uma barreira à compreensão. É que foi mesmo Caim que matou Abel. Isso, as pessoas comuns que falam de bem e de mal sabem-no.