(por causa da doença da literalidade, nunca é demais reforçar: este texto possui recursos estilísticos)
Com uma ou duas portas, maior ou mais pequeno, todos já vimos o nosso frigorífico habitado por alimentos que deixaram de ser próprios para consumo. Porque, subitamente, se estragaram, ou porque a data de validade expirou. Não importa o motivo. Ainda assim, em alguns casos, a inércia não nos sossega, quando se trata de os deitar ao lixo. Uma faúlha de esperança, de saudade, de vergonha em estragar comida, atinge-nos inexplicavelmente. Deixámo-los ficar mais um dia. Talvez mais.
No entanto, a higiene, mais tarde ou mais cedo, sobrepõem-se. O que se tornou impróprio vai para o lixo. O frigorífico é limpo. Volta-se a comprar o que se perdeu. Mas há quem não o faça. E pergunto-me se um olhar sobranceiro sobre isso é suficiente. Pergunto-me se, sendo cada um de nós, e cada um à sua maneira, um acumulador, se uns não o serão por opção, e outros por falta de alternativa. Pergunto-me se, para quem se habituou a ver o frigorífico vazio, ter lá dentro alguma coisa, mesmo que estragada, não será a vitória possível.
É fácil exigir limpeza, quando a empregada dorme no quarto ao lado. É simples mostrar decorro, quando se pode chamar o serviço de quartos. Cultivei um olhar quase demolidor para tudo o que é a indústria da autorrealização, da autoajuda e da consolação imediata, mas até que ponto isso não é um síndrome de privilégio?
Há uns anos largos – independentemente do que essa expressão queira dizer para quem tem 27 anos – surgiu, no parlamento, a proposta de, para promover a saúde pública, se começar a taxar mais os produtos de fast-food. E houve quem dissesse que tal era socialmente injusto por impossibilitar o acesso à alimentação por parte dos mais pobres. Não tenho estatísticas que comprovem este dado, mas percebo a intenção do contra-argumento.
O mesmo se pode dizer da denúncia do populismo. É verdade que ele, como a autoajuda, vende uma ilusão? É. Mas não é menos real que as propostas que denominamos como populistas não deixam de ser a vitória possível para quem nunca teve uma vitória na vida.
Para muitos, o mundo parece funcionar como uma fábrica onde nenhum funcionário, nem mesmo o chefe, sabe o que está a produzir. Numa escolha permanente entre fugir de um chicote, ou ser abalroado por outro qualquer instrumento de tortura. E negação de que, para muitos, nos assemelhamos a um “circo de feras”, muito embora o nosso ar de civilização pareça funcionar mais como combustível da raiva do que como resolução do problema.
Numa Mixórdia de Temáticas, na manhã seguinte a Cristiano Ronaldo receber uma Bola de Ouro, Ricardo Araújo Pereira dissertou, humoristicamente, sobre o facto de, em paralelo com os festejos do “heroísmo” de CR7, não há quem festeje as vitórias e os sucessos daquilo a que ele chamou “Cristianos Ronaldos Civis”. Essa desconexão ajuda a explicar muita coisa.