Razão tinha Passos Coelho, então primeiro-ministro, quando lhe foi perguntado em 2015 o que pensava de uma candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa à presidência da República. A resposta foi despersonalizar a conversa e, sem nomear o futuro PR, confessar que não gostaria de ver no topo do Estado um «comentador de televisão»… Como sabemos hoje, foi isso mesmo que aconteceu e confirmou-se que Passos Coelho tinha toda a razão ao temer a chegada de um comentador de televisão à presidência.

O primeiro aspecto a considerar é, com efeito, o facto de o actual presidente ter sido eleito graças à sua popularidade de anos como comentador em sucessivos canais de televisão que passavam o programa dele no dia da família e em horário nobre. Consta que terá sido, até se candidatar a presidente, «o comentador mais bem pago da televisão». Nunca vi um estudo a este respeito, o que já de si é sintomático, mas seria extremamente interessante conhecer a composição sócio-económica e cultural do eleitorado que o elegeu a fim de explicar o seu comportamento de «comentador» uma vez eleito em 2016, a seguir à confirmação do governo da «geringonça» contra toda a expectativa anterior às eleições legislativas.

Na minha opinião, há entre os seus eleitores uma grande quantidade de pessoas que dedicava à vida pública um interesse mais de «coscuvilhice» do que propriamente político e muito menos governativo, como continua a acontecer. Temos de admitir que é uma questão de «estilos» que convergem, sobretudo quando os espectadores não primam pelo conhecimento dos problemas do país e o «comentador», em compensação, tem resposta para tudo. Em contrapartida, é necessário recordar que até ele foi vítima do factor dominante das eleições portuguesas, a saber, a abstenção. Com efeito, apesar dos seus 52% à primeira volta, o certo é que não conseguiu sequer mobilizar a maioria dos eleitores, a qual se absteve ou votou branco e nulo.

O problema começa quando esse «estilo de ‘achismo’» próprio do presidente se apodera igualmente da comunicação social. São sobretudo os media televisivos, que não têm como resistir à «personalização» das ‘selfies’» distribuídas em quantidades jamais vistas, os portadores do «estilo». Já deve haver poucos portugueses que conseguiram fugir à «consagração fotográfica»… Voluntária ou involuntariamente, o actual presidente rebaixou o debate público veiculado pelos «media» a um nível desconhecido de «opinativite»!

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Não é certo que tudo o que se tem vindo a passar ao nível da figura mais mediática do sistema político seja deliberado. Talvez não seja. Percebe-se, contudo, que há cada vez mais gente nos «media» que começa a sentir que tanta omnipresença é demasiada. O presidente é tão omnipresente que até começámos a sentir necessidade de intervalos de paz e silêncio para reflectir. O terceiro ponto de fragilização do sistema político-partidário provocada pela omnipresença presidencial é, necessariamente, o modo como ela afecta o Primeiro-Ministro – ora de maneira positiva, ora negativa, mas obrigando sempre a uma convergência final – e cria assim um tipo de instabilidade que não é bom para o país.

As marcas deste «achismo» constante num sentido ou noutro são generalizadas. Uma das últimas questões mediatizadas é a anunciada «Lei da Saúde»: um problema real e sério que nos afecta a todos e consome cerca de 10% dos recursos do Estado e dos particulares. É claro que a nova lei anunciada pelo governo foi imediatamente restringida de forma a não hostilizar o PR. Na prática, a parte do dinheiro dos contribuintes que o Estado gasta com o SNS vem diminuindo em relação aos gastos directos das pessoas, as quais pagam hoje um terço da despesa total com a saúde, isto é, quase 6 mil milhões de euros «out of pocket», como os classifica a OMS.

Passe ou não a Lei, uma coisa é certa: o declínio do SNS já começou e é irreversível! Prova-se assim como o constante intervencionismo presidencial só cria opacidade e instabilidade políticas. Para terminar, a agitação opinativa permanente destrói o resto de transparência que sobrasse de um sistema político-partidário como o nosso: anquilosado desde o regresso do PS à governação há um quarto de século. A ausência de reformas susceptíveis de mudar o sistema constitucional e eleitoral do país, assim como a sua estrutura económica e social, fará com que continuemos a marcar passo frente à mudança internacional. Mantendo ilusões patrioteiras e interferindo com o governo a cada passo, o presidente-comentador tem contribuído tanto como o PS para a paralisia política imposta pela «geringonça». Apenas lhes importa que as probabilidades de mútua reeleição não se alterem.