No outro dia, passou-me pela cabeça uma pergunta que parecerá ociosa: será que o PS é “socialista”? O nome traz consigo a memória do marxismo, que vagamente o inspirou nas suas origens, embora de um marxismo convenientemente amputado de um dos seus elementos fundamentais. Com efeito, para o marxismo, o socialismo representa uma etapa histórica que se inicia com a mítica revolução do proletariado e conduz ao comunismo. Ora, essa parte do vetusto credo não se encontra no discurso do PS. De um ponto de vista marxista, o PC deveria ser, por assim dizer, a verdade final do PS. Do ponto de vista do PS, é bom de ver que não. Em princípio, se é que “socialismo” quer dizer alguma coisa, fica-se a meio-caminho entre o capitalismo e o comunismo. E já é muito bom.
Para um grande número de cabeças pensantes, o socialismo é visto como sinónimo de libertação. Não entro nos detalhes, que ocuparam inúmeros tratados, dessa libertação: libertação de quê?, e de quem?, e por quem?, e para quem? Fiquemo-nos por um ponto. Com alguma boa vontade, o projecto socialista entronca na tradição iluminista, ou, pelo menos, sob certos aspectos é coerente com ela. Quer dizer que o socialismo é visto como um meio de desenvolver a autonomia humana, a nossa capacidade de pensarmos e agirmos em liberdade. Mas, sublinho, apenas sob certos aspectos. Porque, sob outros, o socialismo faz-se contra o iluminismo. Com efeito, as críticas da tradição iluminista, que é uma tradição que, na sua conflitualidade interna, faz todo o sentido, são tanto de direita quanto de esquerda. Acontece que as críticas de direita são hoje em dia perfeitamente minoritárias, enquanto que as de esquerda – pense-se na influente maneira de pensar oriunda de um filósofo como Adorno – se encontram bem vivas e presentes em diversas correntes de pensamento e movimentos globais. Não quero fazer aqui o processo da falsa perspicácia dessas críticas, apenas assinalar a dimensão que tomam hoje em dia.
Consciente ou inconscientemente, tais críticas conduzem à ideia de revolução, isto é, de uma transformação súbita e radical da organização da sociedade. O mito da revolução é um mito poderoso e seria pura ingenuidade pensar que, pelo facto de a palavra não tomar a dianteira nos discursos políticos, o mito se encontra adormecido. Ele está acordadíssimo e muito activo. E com ele vem o desejo de uma democracia dotada de uma maior legitimidade do que a mera “democracia formal”, uma democracia que transcenda a democracia formal e, pelo caminho, a anule, ou apenas guarde dela certos aspectos. Vem também com o mito da revolução a ideia de uma regulação milimétrica de toda a sociedade pelo Estado. De facto, uma tal regulação transformou-se no único conteúdo substantivo que a palavra “socialismo” apresenta.
Este artigo é exclusivo para os nossos assinantes: assine agora e beneficie de leitura ilimitada e outras vantagens. Caso já seja assinante inicie aqui a sua sessão. Se pensa que esta mensagem está em erro, contacte o nosso apoio a cliente.