2020 não é apenas o ano da pandemia. Marca também o final de um ciclo político na Alemanha e na Europa – com o terminar da presidência alemã, celebram-se também os 30 anos da reunificação alemã e o fim dos 15 anos do mandato da chanceler Merkel.

Merkel, garante da estabilidade da Alemanha, tornou-se o fiel da balança da política europeia. O seu estilo de liderança baseia-se no seu papel de mediadora. A nível europeu, o seu método foi estreado e testado durante a crise do Euro. Apesar da falta de rasgo, a política alemã – ancorada na doutrina económica soziale Marktwirtschaft – conseguiu resistir às vagas das sucessivas crises que alastraram pelo continente. A recusa de mutualização da dívida, teve, contudo, custos altos e as forças centrífugas que despoletou alimentaram os nacionalistas que, desde então, ganharam cada vez mais força eleitoral na Europa Ocidental e Oriental.

Este método de negociação, baseado numa posição de equidistância, tem vários méritos, em particular quando aplicado na Europa. Num continente cada vez mais heterogéneo e complexo, uma força mediadora que não se impõe pela hubris e tenta equilibrar as várias forças é, sem dúvida, útil. Durante a presidência alemã de 2020 foi aplicada e resultou em alguns sucessos notáveis, como o pacote de recuperação, o mecanismo de Estado de Direito e a negociação do Brexit, todos casos em que o método negocial europeu beneficiou das qualidades da chanceler.

Enquanto os Estados Unidos eram o polo hegemónico e garantiam a segurança da Europa, esta posição era ainda sustentável, em particular na forma como a Alemanha lidava com a Rússia e a China. Mas num mundo em que os líderes autoritários dentro e fora da Europa se afirmam pelo confronto, a competição geopolítica acelera e a lei da força aparece dominante, a equidistância – entretanto elevada a doutrina de política externa – peca por indecisa, ingénua e pouco eficaz.

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A forma como a chanceler tem lidado com a Rússia e a China, demonstra quão desgastada está esta forma de fazer política. O convite do presidente-eleito Biden para uma nova parceria transatlântica recebeu inicialmente uma resposta entusiástica por parte dos Europeus. Mas nas últimas duas semanas, a indecisão da Alemanha voltou a dominar. Por um lado, a irresolução em relação à compleição do gasoduto NordStream 2, que ligará diretamente a Alemanha à Rússia. Muitos dos críticos do gasoduto nos EUA, na Europa de Leste e na própria Alemanha acusam o governo alemão de estar a dar ao Presidente Putin mais instrumentos de chantagem à Europa Ocidental, em relação, por exemplo, a situações concretas como a Ucrânia.

Em relação à China, a doutrina da equidistância faz também estragos. Na última semana, a Alemanha deu dois golpes à esperança de Joe Biden de reavivar uma parceria transatlântica, que, em conjunto, contivesse a China. Primeiro, o governo alemão deu, na semana passada, luz verde a uma nova Lei de Segurança Informática, que permitirá a utilização da tecnologia Huawei em redes móveis 5G, em troca de garantias do vendedor chinês sobre a segurança do seu equipamento. O projeto de lei marca um revés para a administração americana, que há muito pressiona os aliados europeus a rejeitarem a tecnologia da Huawei.

Segundo golpe, a notícia de que a chanceler Merkel e o presidente Macron querem concluir esta semana um acordo de investimento da UE com a China. A notícia toma contornos surpreendentes e alarmantes quando, a um mês da tomada de posse de Biden, a UE ter recentemente apelado para que os EUA trabalhassem em conjunto para enfrentar o “desafio estratégico” colocado pela China. A decisão aparece, agora, como extemporânea e fruto de instintos provincianos: há quem a defenda como uma forma de impressionar os EUA quanto à capacidade europeia de “autonomia estratégica”. A reação americana não tardou. Jake Sullivan, futuro conselheiro de Segurança Nacional de Biden, afirmou que a nova administração “acolheria com agrado consultas antecipadas com os nossos parceiros europeus sobre as nossas preocupações comuns acerca das práticas económicas da China” e apelou à UE para travar as negociações até a administração Biden tomar posse. Como irá explicar Sullivan ao Presidente esta nova manobra europeia, e arguir a favor de uma estratégia concertada, quando, à primeira oportunidade, os Europeus viram costas a Washington e oferecem uma vitória estratégica a Pequim?

Para a presidência portuguesa da União Europeia, que começa a 1 de janeiro, a indecisão política de Merkel quanto às prioridades de política externa da Europa é, sem dúvida, um desafio. Para Portugal, é fundamental ter todo o apoio para aproveitar o élan da transição para um novo ciclo político na Europa e no mundo ocidental e lançar uma nova parceria transatlântica. Da equidistância para a escolha, vai um passo que vale a pena dar.

Madalena Meyer Resende (no twitter: @ResendeMeyer) é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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