A notícia sobre a investigação de abusos sexuais praticados na Igreja francesa nos últimos setenta anos, assim como outras semelhantes, fazem sempre com que me venha à mente a minha experiência profissional quase quotidiana. Na verdade, na minha função de juiz desembargador, tenho ocasião de lidar com recursos de condenações (muitas delas em penas das mais graves) por abusos sexuais de crianças e adolescentes. Quase não há semana em que não passe por mim um desses recursos, ou venha ao meu conhecimento um recurso apreciado por um dos meus colegas.

Desta minha experiência, que obviamente não serve para tirar conclusões próprias de um estudo científico, pode retirar-se a evidência de que este fenómeno é, em todos os âmbitos da sociedade, mais frequente do que muitos imaginarão.

Não faço esta afirmação para de algum modo relativizar ou atenuar a gravidade da prática de abusos sexuais por parte de sacerdotes ou em ambientes eclesiais. Seria de esperar que neste âmbito esse fenómeno, pura e simplesmente, não existisse, não que existisse numa escala mais ou menos equiparável à que existe noutros âmbitos.

Também será de salientar que há especificidades ligadas à prática de abusos sexuais por parte de sacerdotes que não se verificam nos casos que chegam ao meu conhecimento. Por outro lado, a grande maioria dos casos analisados na investigação solicitada pelos bispos franceses situa-se em épocas bastante recuadas no tempo, quando não havia uma tão clara perceção social da gravidade dos danos causados às vítimas. Os casos que chegam ao meu conhecimento são atuais, de uma época em que são mais do que evidentes esses danos e dizem respeito aos mais variados âmbitos sociais. Esta minha reflexão poderá alertar para a necessidade de alargar a toda a sociedade os esforços de prevenção e de cuidado para com as vítimas que têm sido empreendidos pela Igreja Católica em vários países nos tempos mais recentes. Afirmou, a este respeito, o presidente da comissão que estudou o fenómeno na Igreja francesa, Jean Marc Sauvé, à revista Famille Chrétienne (n.º 2283, 16-22/10/2021) que esse estudo é pioneiro e deveria servir de exemplo para outros âmbitos sociais.

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Com isto quero dizer que o facto de este fenómeno não ser específico dos ambientes eclesiais não serve para relativizar a gravidade da sua existência nesses ambientes, mas serve para que outras instituições, e a sociedade em geral, não o descure, nem descure os danos que provoca nas vítimas, como na Igreja se procura fazer hoje.

Os casos que chegam ao meu conhecimento dizem respeito a pessoas (agentes dos crimes) de todos os extratos sociais, de todos os graus de instrução e de todas as profissões (incluindo professores, médicos ou enfermeiros). A maior parte dos crimes ocorre em ambientes domésticos, praticada pelo pai ou, mais frequentemente, pelo companheiro da mãe, ou por outro familiar. Mas não só. As modernas tecnologias de comunicação potenciam a prática de alguns desses crimes e a facilidade com que adolescentes partilham imagens íntimas até com desconhecidos leva ao seu aproveitamento por adultos. O tipo de práticas é indescritível e daria matéria para a mais sórdida pornografia. A posse de pornografia infantil muitas vezes coincide com a prática dos atos nela retratados.

Essas práticas denotam desequilíbrios psíquicos graves que exigem um acompanhamento especializado, que escapa aos meus conhecimentos. Mas, como juiz, não posse reduzir o problema a essa dimensão. Quase nunca se coloca a questão da inimputabilidade, ou sequer da imputabilidade diminuída, dos agentes dos crimes. Tal significa que eles podem, e devem, ser responsabilizados pelos seus atos. Se assim não fosse, não teria sentido qualquer condenação numa pena, nem a severidade das penas normalmente aplicadas. Há, pois, uma dimensão ética dos comportamentos em causa que não pode ser ignorada.

A respeito desta dimensão ética, uma questão me vem à mente, que pode parecer simplista, mas que me parece fundamental e é hoje quase sempre ignorada.

A prática destes crimes não pode ser desligada do generalizado desprezo da ética sexual. Numa sociedade em que parece reduzir-se as exigências da ética sexual à prevenção de doenças e ao respeito pelo consentimento de quem por vezes nem o nome se conhece (consentimento que nas crianças e adolescentes até poderá verificar-se sem que ele assuma relevância), não é estranho que se generalize a prática de abusos sexuais de crianças, adolescentes e adultos.

A ética sexual impõe o autodomínio, o domínio dos impulsos sexuais (por muitos fortes que estes se manifestem), domínio de que hoje pouco se fala, como se, por decorrência da ilimitada liberdade sexual, todos esses impulsos devessem ser satisfeitos. Esse domínio é reflexo do respeito pela dignidade humana, a do próprio e a dos outros. Representa o exercício da verdadeira liberdade. É porque esse domínio é desvalorizado que se praticam crimes sexuais de que são vítimas crianças, adolescentes e adultos. A prevenção desses crimes conforme à dignidade humana supõe esse domínio, não é uma questão hormonal que se resolva com a castração química.

Vem a propósito referir o que se retrata num livro recente do sociólogo francês Pierre Verdrager: L´enfant interdit de la defense de la pédophilie à la lutte contre la pédocriminalité, Armand Collins 2021.  Nesse livro é descrito em pormenor um movimento que, a partir dos anos setenta do século passado, em França, pretendeu justificar a pedofilia. Um movimento que obteve apoios entre alguns dos mais influentes intelectuais da época. Surgiu na sequência da “revolução sexual” de maio de 68, invocando o direito ao prazer sem entraves, de que não poderiam ser privados nem os adultos, nem as crianças ou adolescentes. Reivindicou a descriminalização das relações sexuais entre adultos e crianças e adolescentes sempre que essas relações não fossem marcadas pela violência e se verificasse consentimento, porque nesses caos não causariam quaisquer danos. Alegava, numa linha de relativismo cultural, que o interdito desse tipo de relacionamento sexual era puramente convencional e inexistente em muitas culturas. O caso mais chocante é o de um escritor (Gabriel Matzneff) que nos seus livros fazia abertamente a apologia da pedofilia e chegou a relatar a sua experiência de cliente de prostituição infantil, de ambos os sexos, nas Filipinas. O que não o impediu de receber elogios de vários quadrantes, prémios e apoios financeiros públicos. Particular impacto teve recentemente em França a divulgação, num livro e por outros meios, do testemunho de uma das suas vitimas (Vanessa Springora).

Essas teses estão hoje completamente desacreditadas, desde logo porque são conhecidos os graves danos provocados nas vítimas de abusos sexuais de crianças e adolescentes. A evolução da legislação penal, no plano nacional e internacional, tem sido, por isso, num sentido de um endurecimento progressivo das penas correspondentes a tais crimes.

Uma comissão independente que analisou os fenómenos dos abusos sexuais ocorridos no âmbito da Igreja Católica alemã nas últimas décadas concluiu que entre as causas desse fenómeno estava a própria doutrina católica a respeito da ética sexual. Compreensivelmente, como parece lógico, e contra essa ideia, afirmou o bispo de Ratisbona, Rudolf Voderholzer que na raiz desse fenómeno não está a ética sexual católica, mas o seu notório desprezo. E – podemos acrescentar – mesmo que a adesão a essa doutrina seja proclamada verbalmente como uma fachada, não sendo internalizada e, por isso, vivida com coerência.

De acordo com a ética católica, a união sexual deve ser expressão de doação recíproca e da mais profunda comunhão pessoal, uma comunhão que envolve todas as dimensões da pessoa, incluindo os seus projetos futuros, e se abre generosamente à geração de novas vidas (por isso, deve ocorrer no contexto do casamento).  As catequeses de São João Paulo II sobre a teologia do corpo são talvez a descrição mais profunda e completa dessa visão da sexualidade, uma visão positiva, que a insere num maravilhoso desígnio divino. Com ela contrasta toda a forma de instrumentalização de outra pessoa, reduzida a objeto de prazer egoísta.

Compreende-se, por isso, que se diga que os abusos sexuais de crianças e adolescentes são expressão de um notório desprezo da ética sexual católica. Neles é evidente e ganha máxima expressão a redução da vítima a objeto de um prazer egoísta, a sua coisificação. Delas está ausente alguma forma de comunhão pessoal, que supõe uma relação simétrica, e não de domínio.

Na verdade, do generalizado desprezo da ética sexual pouco se fala a propósito dos crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes. Pouco se fala do que parece óbvio, Sem querer negar a complexidade do fenómeno, não é descabido salientar esta clara evidência.