Face ao ditador Maduro, que empreendeu uma guerra contra o seu próprio povo, obrigando quase três milhões e meio de venezuelanos a abandonarem o país nos últimos anos, gente simpática como Dilma Rousseff, Gleisi Hoffmann, Francisco Louçã ou Joana Mortágua é tomada por um horror sagrado face ao imperialismo americano. Trump arranjará maneira, por um método qualquer, de pôr a mão na Venezuela e de impor um seu fantoche, tendencialmente sanguinário. Nada de surpreendente, é claro. Os velhos ódios, como os velhos amores, morrem dificilmente. Mas o facto de não ser surpreendente, muito exactamente, convida a alguma reflexão.
A facilidade em saltar para os hipotéticos males futuros, desvalorizando alegremente os reais males presentes, é ajudada por duas características salientes: a incapacidade de olhar os factos com um mínimo de despreendimento relativamente a um quadro teórico geral no qual cresceram e de que nunca se afastaram por um milímetro – e um profundo desprezo pela plebe. Estas duas características encontram-se, de resto, ligadas uma à outra.
Convém não esquecer que uma boa parte da esquerda (incluindo uma grossa fatia do PS) vive no interior de um mito. O mito generosamente garante sentido a tudo. Ou melhor, garante o sentido todo àquilo que permite pensar e, simultaneamente, cria uma fronteira intransponível entre o sentido e o sem-sentido, que pertence às trevas exteriores. O que é que o mito, genericamente, diz? Diz que há uma direcção bem determinada da história, na qual, sabendo-o ou não, caminhamos, e que essa direcção conduz ao socialismo e ao comunismo. Quem segue nessa direcção está no bom caminho, quem marcha em sentido contrário está no caminho errado. Não ver isto é laborar no sem-sentido, que só pode resultar de uma resistência voluntária ao sentido da história ou da pura e simples ignorância.
Toda a gente está a par desta doutrina, que outrora recebeu desenvolvimentos filosóficos apreciáveis, bem como elaborações de uma rusticidade extraordinária. O que se tende a ignorar é a que ponto ela continua a trabalhar os espíritos e a fornecer o mobiliário mental fundamental de gente que aparenta alguma sofisticação intelectual. O núcleo essencial do mito permanece intacto naquelas cabeças, aconteça o que acontecer, e se, por um instante ou outro, a crença se torna menos aparente, é para reaparecer logo a seguir, magicamente intacta e não menos poderosa. Não há desmentidos de qualquer espécie, empíricos ou teóricos, que a possam pôr em causa, como nada há que consiga tornar mais porosa a fronteira entre sentido e sem-sentido. Isso manifesta-se tanto nas mais gerais como nas mais ínfimas e ridículas questões. O mito perdura, eternamente fechado em si mesmo.
Percebe-se assim que Joana Mortágua ou Francisco Louçã, em artigos publicados no esquerda.net, não vejam o que qualquer pessoa que não viva no interior do mito vê com toda a nitidez possível. Por exemplo, que o regime “bolivariano” é um regime que, desde o primeiro momento (desde Chávez), estava condenado a tornar-se numa ditadura e que Guaidó, valha ele o que valer, representa efectivamente a voz possível de uma sociedade humilhada e miserável, submetida à crueldade de uma casta corrupta. Aí onde o ridículo e o grotesco anunciavam com razoável antecipação o horror, nada viam. O ridículo e o grotesco escaparam-lhes por inteiro, e tal colossal falta de sensibilidade diz muito daquelas cabeças. Certamente que agora se distanciam parcialmente de Maduro, que manifestamente não pode já encarnar o sentido da história. Maduro tornou-se incómodo, de mau gosto. Mas essa sensibilidade de superfície – que os distingue do PC, que tem a pele mais dura — não chega, é claro, para olhar a realidade de frente e medir o real sofrimento das pessoas. Cada milímetro de distância de Maduro é compensado com metros de repúdio dos Estados Unidos, finalmente os únicos efectivos fautores da desgraça dos venezualanos. Sempre foi assim. É um ritual que o mito ordena.
Mesmo assim… Como se pode ser tão imune à informação amplamente disponível sobre a miséria venezuelana? Bom, a imunidade à informação sobre o terror tem uma larga história e também aqui não se pode falar propriamente de novidade. Mas, sobretudo, é preciso ter em conta que o mito obriga a uma extraordinária selectividade no uso da compaixão. Se as criaturas humanas não encaixarem bem no esquema que o mito oferece, não gozarão sem dúvida da mesma piedade que merecem aquelas que nele encaixam. Formam uma plebe indistinta que não comove. Não se anda longe do desprezo.
É este desprezo, mais explícito ou mais implícito, que essencialmente fere. É o desprezo a que o mito obriga em relação a tudo o que escapa ao seu fechamento, a tudo o que não cabe no seu sentido. Aquela gente que foge da Venezuela ou que por lá se deixa morrer, pura e simplesmente não faz sentido. Joana Mortágua e Francisco Louçã preferem falar dos Estados Unidos e dos sinistros planos do Império. Conhecendo um pouco aquela maneira de pensar, faz todo o sentido: um sentido que tem uma triste e longa história.