Em 1997, depois de 30 anos a fingir-se de doido para escapar a várias acusações, o mafioso Vincent Gigante foi finalmente condenado a 12 anos de cadeia, onde viria a morrer em 2005. Durante três décadas, o padrinho da família Genovese passeou-se por Nova Iorque de pijama e chinelos, a balbuciar incoerentemente para si próprio ou para pombos, contando com diagnósticos de médicos amigos que garantiam a loucura do bandido. O precedente existe. Não é inédito, em chefes de famílias do crime organizado, simular insanidade para efeitos de defesa jurídica. Será que Ricardo Salgado está a usar o mesmo estratagema? As semelhanças com o caso de Gigante são evidentes. Como Gigante, Salgado também anda invulgarmente maltrapilho. Tudo bem, não é de pijama e chinelos, mas para quem só costuma apresentar-se em público de fato feito à medida, gravatas de seda e sapatos de pele de unicórnio, aparecer com um banal casaquinho de malha é sinal de alarme.
Depois de ter visto e revisto as imagens da chegada de Ricardo Salgado ao tribunal, continuo sem conseguir dizer se o velho banqueiro está a fazer de conta. Mas tenho a certeza de que o seu advogado está. O lábio tremelicante, a lagriminha marota a querer marejar, a voz a sumir-se, a raivinha indignada pela injustiça cometida ao seu constituinte, tudo aquilo tresanda a encenação. Um advogado, principalmente dos caros, controla sempre as suas emoções. Aliás, cobra o suficiente à hora para não ter emoções. Se Francisco Proença de Carvalho parece um canastrão de telenovela é porque faz parte da estratégia de defesa parecer um canastrão de telenovela. Para granjear compaixão pelo cliente. É possível que funcione, atenção. Ao verem a figura patética, as pessoas pensam: “Para se deixar representar por este neurótico, o Salgado deve estar mesmo maluquinho, coitado”.
Agora, se em termos de lamechice Proença de Carvalho tem estado bem, ao nível da argumentação tem falhado com estrondo. À porta do Campus da Justiça, o advogado lamentou que Ricardo Salgado tenha sido interrogado, pois está diminuído, como se viu pelo facto de ter dado a morada errada, a data de nascimento errada e várias outras informações erradas. Ora, isso não prova coisa nenhuma. Ricardo Salgado a prestar informações falsas não é lá grande novidade. É, justamente, uma das razões para estar a ser julgado: durante anos prestou informações falsas aos clientes, à família, aos accionistas, ao Banco de Portugal, aos deputados e ao povo português em geral. Portanto, se quer mostrar que o seu cliente está diminuído, Proença de Carvalho vai ter de arranjar exemplos melhores.
Não sendo especialista em doenças neurodegenerativas, faltam-me habilitações para avaliar a realidade do estado de saúde de Ricardo Salgado. A minha capacidade para identificar aldrabice médica esgota-se nas vezes em que os meus filhos fingem estar engripados para não ir à escola. Os sintomas surgirem na segunda-feira de manhã, num dia de teste, e não afectarem a vontade de comer chocolate, são indícios de que podemos estar perante fraude clínica. Mas os meus filhos são maus actores. A tosse é demasiado elaborada, a rouquidão é fajuta, a dor de cabeça some-se a ver desenhos animados e a prostração não resiste a uma bola a saltar-lhes à frente. Já Salgado é um estupendo impostor. Posso não conseguir dizer se está a falsear o Alzheimer, mas não tenho dúvidas nenhumas de que, se quisesse, conseguiria fazê-lo. É a conclusão óbvia a que chega quem viu e leu transcrições de entrevistas, depoimentos e audições em comissões parlamentares. Ricardo Salgado possui os conhecimentos para transformar uma pessoa normal em alguém diminuído intelectualmente, uma vez que passou a vida a fazer dos outros parvos. Bastava aplicar a receita em si próprio.
Existem dois tipos de pessoas que não acreditam que Ricardo Salgado esteja realmente doente: quem nunca teve contacto directo com Alzheimer e acha que quem sofre da doença fica apenas desmemoriado, no fundo acha que é uma daquelas maleitas que aborrece mais os outros do que quem sofre dela, tipo halitose; e quem foi pessoalmente prejudicado pelas patranhas de Salgado, ao ponto de agora desconfiar de tudo o que vem dali. Para essas pessoas, Salgado é o rapaz que gritou lobo, até ao dia em que o lobo aparece com um braço do rapaz na boca e os aldeões, depois de enganados 73 vezes, dizem: “O aldrabão está a mentir outra vez! Desta vez não caio nessa!”
Há ainda um terceiro tipo de incréus. Os que preferem acreditar que Ricardo Salgado não sofre realmente de Alzheimer. Assusta-os ver que o homem que controlava o país com uma impressionante agilidade mental seja agora incapaz de ordenar ao mordomo que lhe ate os sapatos. Compreende-se. É duro encarar assim a nossa decadência, optamos por ignorar. Mas é difícil escapar a esta evidência. Na Roma Antiga, durante as paradas triunfais, o cônsul vitoriado desfilava numa quadriga acompanhado por um escravo cuja função era, no auge da glória, segredar-lhe: “Lembra-te que és mortal”. Ao ver este julgamento, somos todos generais romanos a desfilar, com Salgado a sussurrar-nos: “Lembra-te, que eu já não consigo”.
Seja como for, depois da primeira semana de testemunhos, é seguro dizer que, apesar de tudo, Salgado continua a parecer o primo mais esperto.