1 Faltavam três, quatro dias para o domingo eleitoral, cruzei-me numa rua lisboeta com um “alto responsável” (não é assim que se diz?) do PSD, apoiante de sempre de Rui Rio. Sendo também ele o “inventor” da candidatura de Carlos Moedas a Lisboa, pareceu espantado com a minha desatentação profissional, e de resto não só a minha: quem tinha dado conta de que Moedas até já estava “eleitoralmente encostado a Medina” e isto quando ainda faltavam quatro dias?
2 Era verdade. Tudo se encaminhava para uma boa “possibilidade” de sucesso: as sondagens internas que o PSD mandava diariamente fazer circunscrevendo-as obviamente apenas a Lisboa e seguindo sempre um mesmo padrão de modo a obter uma tendência, traziam não só indispensáveis indicadores como eram fiáveis instrumentos de navegação. Com elas se navegou por mares adversos numa campanha muito profissional e com um bom programa de candidatura.
“Mas como nada acontece até ser contado”(Virginia Woolf), e muito pouco disto nos era realmente contado – ou dado a ver – houve duas campanhas: a da coligação PSD/CDS que depois de um frouxo início seguiu (convictamente) o seu caminho; enquanto a do poder, do governo, do PS, de Medina e da media, seguiam (convictamente) o deles. Tal como sucede com as linhas paralelas, nunca se poderiam encontrar. Mas enquanto Medina se movia (aparentemente, pelo menos) assente na sua própria certeza de vencedor antecipado, Moedas antecipou outra coisa, percepcionando o desagrado ou o cansaço de um eleitorado – urbano, informado, politizado. E farto de abusos socialistas e dos excessos do Rei-Costa-Sol. Ou seja, para além de uma escolha circunstancialmente autárquica, houve um forte protesto político, com oportunidade e data marcada: as eleições de domingo. E no domingo as urnas falaram. Demérito de Medina/Costa mais que mérito de Moedas? Não, mas uma coisa é indesligável da outra.
A dupla campanha de António Costa, ora secretário geral socialista doublé de chefe do governo, ora vice versa – era conforme –, virou o feitiço contra o feiticeiro. Havia o costume de se dizer “Costa é mau em campanhas” e ninguém fazia muito caso, estava assente e há muito que tudo se lhe aceita e perdoa. Desta vez, porém e para lá da costumeira falta de talento do líder do PS para campanhas e carne assada, o que o eleitorado reteve foi também (sobretudo?) uma sucessão geográfica de puros abusos (ilhas incluídas). Abusos enrolados numa litania infindável de promessas com dinheiro que não é do PS.
A resposta – não sabemos se com futuro consistente e persistente – foi o veto político de parte considerável do eleitorado mais urbano que se apercebeu dessa espécie de “apropriação” socialista dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência e não gostou. A voracidade – visível e audível – com que na campanha os autarcas do PS se congratularam com a aterragem garantida (para eles) de tais fundos também caiu mal. E, last but not least, a interferência nunca vista – na forma, no tom, no conteúdo, na dimensão do despropósito – numa empresa privada, no decurso de uma campanha partidária (!) caiu ainda pior. Por momentos houve mesmo qualquer coisa de aterrador naqueles minutos de pura ira contra a Galp. Ou de como passou a ser legitimo que nos interroguemos até onde irá (e actuará) um tão perigoso entendimento do uso do poder? Sim, justamente em democracia.
Foi só isso que fez ganhar Moedas? Foi uma soma de boas parcelas – candidato confiável, programa, atitude, equipa – mas é imprescindível somar-lhe o protesto sob pena de não se perceberem as coisas. E não foi só em Lisboa. Quem olhar para o Porto, por exemplo – onde o PS quase se sumiu do mapa – perceberá bem o poder que um voto tem. Ou seja, estão aí os sinais e alguns já acesos. O centro e a direita ganharam? Não, mas.
3 E depois foi muito interessante de observar como, de um minuto para o outro, o mal amado PSD passou a tema forte da longuíssima noite eleitoral e Moedas a um inesperado produtor de suspense político. Ou como Rio foi expeditamente convocado do banco para o relvado como grande goleador (que não é).
Claro que o triunfo de Carlos Moedas lhe conferiu a voz política e a influencia partidária que nunca teve. Que vai fazer com ambas será o mais difícil para ele mas da facilidade nada reza. E o resto – à direita ou à esquerda – criou alguns equívocos.
Equivoco um: à excepção de Coimbra, o líder do PSD pouco teve a ver, pessoal e politicamente, com os municípios ganhos pelo PSD. O genuíno empenho e energia postos na quilometragem feita de norte a sul por Rui Rio não se confunde com capacidade de liderança, talento estratégico, projecto político, produção de uma alternativa. Meia dúzia de vitórias municipais, mesmo que muito suadas (por outros) não fornecem a um líder a capacidade política que aparentemente lhe parece faltar e já vai tempo. Agora é mais fácil, Rio passou a “vencedor”? Só aparentemente. Um mínimo de racionalidade política recomenda que continuem em aberto no PSD os capítulos previstos. Já anteriormente previstos. Há equívocos duros de roer. Se forem políticos, ainda mais, são fatais.
Equívoco dois: a derrota de Medina fragilizou-o mais no Largo do Rato do que na Praça do Município. Inviabilizando (irreversivelmente?) a sua tão por ele sonhada futura liderança do PS. O fracasso do ex-autarca de Lisboa fez de imediato projectar sobre Pedro Nuno Santos prognósticos taxativos: será dele o próximo PS. Dele, do seu aparelho, das suas tropas, das suas certezas, da sua ambição. É esquecer que António Costa acha – sabe – que seria um equivoco politico grave “conceder” a liderança da sua casa de família a alguém que ele não aplaude (politicamente) e de quem desconfia (politicamente). Não concederá. Nem consentirá. Nem que para isso tenha de rever planos que lhe são caros e projectos que gostaria (muito) de concretizar.
Equivoco três: seria mais conforme à sua função que o Presidente da Republica não insistisse no comentário ao ar do tempo político e aos seus protagonistas, louvando-os ou desgraduando-os. Há arautos oficiais e oficiosos que se encarregariam com júbilo e zelo da tarefa.