1 Deverá haver poucas impressões digitais tão fortes quanto a que António Costa deixou em Lisboa onde foi omnipotente autarca. Conheceu, mandou, pôs, dispôs: escolhendo, preferindo, elegendo, protegendo. Decidindo quem dentro do seu agregado partidário merecia atenção, projectos, aprovação, mimo.

Se inegavelmente cuidou bem da cidade, só havia nela um dono e senhor, ele mesmo. E na aliança de aço que fizera com Manuel Salgado sabia-se quem mandava na aliança.

Costa ficou uns anos, teceu uma rede de escolhidos e preferidos, saiu, deixou a rede entrou Medina. Um discípulo. O discípulo amava – e seguia – o mestre, este punha nele todas as suas complacências. Começou por ser aliás uma sucessão, só depois uma eleição. Mas num e noutro caso e apesar do trabalho feito – e sim, também houve trabalho feito, conheço a lista – os consulados de Medina consentiram na percepção de que a impressão digital costista se mantinha: na herança de ideias, projectos, gente – Manuel Salgado por exemplo – mas sobretudo num injustificado triunfalismo, marca da “casa”: como se o PS permanentemente se auto-ungisse de uma legitimidade sobrenatural que tudo lhe permitia e de tudo o dispensava. Uma cultura política de sobranceria “natural” enfeitada pelos irremovíveis risos e sorrisos de António Costa. A vida era bela.

Que há nesta história de particularmente “contável”? Há isto: dada a presença, e influência do líder do PS em Lisboa, a derrota autárquica de 26 de Setembro pertence-lhe em grande parte e eis o que não é de somenos. Enquanto que no Porto, em Sintra e noutros lugares foi o PS como um todo que perdeu, em Lisboa foi pessoal e politicamente António Costa: uma parte do eleitorado lisboeta quis que ele saísse daquela cena – ao menos daquela – por interposto Medina. Não estou a eximir o ainda presidente de responsabilidades, longe disso, basta pensar na história da entrega de dados de activistas políticas pela Câmara de Lisboa às respectivas embaixadas – imperdoável história – para perceber a parte de leão que ela teve neste fracasso eleitoral. E houve mais: o falhanço da habitação – ficou aquém de todas as promessas –, a despropositada obsessão com as ciclovias numa cidade que as estranha, as deploráveis escolhas politicas como a da presidente da freguesia de Arroios, agora derrotada. O meu ponto não é porém hoje esse mas a persistente cultura de poder socialista promovida há muito pelo incansável mentor António Costa: o tom altivo, a exibição da arrogância na certeza da vitória antecipada, o puro desprezo usado contra os adversários, a “démarche” de proprietários em vez de servidores políticos. Pior: todos – autarcas, ministros, deputados – bebem extraordinariamente deste mesmo caldo, rendidos a este tique socrático de má memória e mau agoiro.

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Fernando Medina, o dilecto de Costa para lhe suceder no PS, também se rendeu, num mimetismo que era dispensável e fez dele a segunda vítima (a primeira foi o próprio António Costa). É cedo para dizer se Medina hipotecou o seu futuro e não sou eu que o direi, muito pelo contrário. Mas… e já agora: e aquele vitorioso discurso de António Costa na madrugada eleitoral quando já sabia – mas nós ainda não – que o PS perdera Lisboa? Ignorando Fernando Medina e “encafuando” a sua derrota num saco de vitórias (secundárias) e num país “libertado” por obra e graça do PS? Como classificar politicamente aqueles longos minutos?

Uma impressão digital não se esbate. Fica. A do líder do PS que hoje me trouxe, não: esmorece e fenece. Mais depressa do que se imaginou, ou se jurou, ela começa agora a esfumar-se no ar da cidade. E grão a grão, cidade a cidade… É que um belo dia, a consciência da insuportabilidade de certas coisas fará um caminho na razão inversa desta impressão digital: uma cresce, a outra, decresce. Mesmo tendo ganho estas eleições autárquicas .

2 Basta um olhar de relance: o governo está tão desacreditado – desautorizações, divisões internas, inoperância, exaustão – que procurar substitutos irá carecer de garantia no sucesso da empreitada. E agora, para além dos que a decência ou a inabilidade já deviam há muito ter excluído, há um novo candidato – Gomes Cravinho – a entrar no carrocel de saída.

Há muito que não se testemunhava questão institucional tão grave como a que opôs o poder político às forças armadas, obrigando um estupefacto Presidente da República a cortar cerce o inexplicável gesto do Governo.

Não se pode fazer de conta que se tratou de uma divergência do foro interno militar, uma ocorrência inter-pares e apenas a eles militarmente circunscrita. Nem resumi-la a uma “trapalhada”. Não foi: o primeiro-ministro (o mais anti-militarista que a nossa democracia conheceu) e o ministro da Defesa apropriaram-se de uma competência constitucional – a nomeação de altos cargos militares – do Chefe de Estado. Não se compreende muito bem como foi possível e porque foi possível, mas o que ambos produziram foi uma questão de Estado. O mal-estar que deixa não é leve, não será passageiro, envenenará futuras nomeações. As relações Forças Armadas/Governo passarão a estar sob suspeita. Uma questão de Estado, sim.

Basta aliás atentar na escolha de Azeredo Lopes e depois de Cravinho para a Defesa para entender uma espécie de menorização das Forças Armadas na hierarquia das prioridades ou atenções de António Costa. O chefe do Governo – que nunca se deu bem com militares – parece nunca ter entendido o que as FA simbolizam, o respeito que reclamam, o que lhes deve dar, o que lhes deve pedir.

Pior impressão digital deixada agora pelo chefe do governo e pelo seu ministro da Defesa no meio militar – e fora dele – deve ser difícil.

3 Acabo com uma belíssima impressão digital: a que Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra/Biblioteca deixa naquilo de que amorosa e incansavelmente cuidou, na hora em que se despede ao fim de décadas de muito bom e leal serviço público. Há que honrar – e aplaudir – os melhores servidores do Estado. E reconhecer o modo como levaram a cabo o seu trabalho, quase sempre contra ventos e marés – do destratamento do Património por quem nele tem as mais altas responsabilidades, à permanente falta de meios passando pela saga da burocracia e outras sagas. Mário Pereira pertence a uma geração que foi um escol no nosso Património e no seu cuidar. Partirá presumo eu com alguma nostalgia pelo que poderia ter sido de (tão) melhor e não foi. Mas, suprema recompensa, partirá de consciência tranquila. Por mim agradeço-lhe: tal como o fazia para com os meus botões de cada vez que visitava o Palácio ou que, sentada na “sua” Basílica, ouvia com deleite os seis órgãos de Mafra – conjunto único no mundo — “conversarem” musicalmente uns com os outros, iniciativa que muito se lhe deve.

Entender assim o serviço público será muito parecido com um dom.