1 Até compreendo os receios estratégicos de Putin: afinal, a invasão da Baía dos Porcos de 1961, secretamente dirigida e financiada pelo governo norte-americano, tinha por objetivo evitar a consolidação de um regime ideologicamente hostil na fronteira dos EUA. A preocupação norte-americana com governos hostis na fronteira decorre aliás da “Doutrina Monroe”, formulada em 1823, pela qual “any intervention in the political affairs of the Americas by foreign powers is a potentially hostile act against the U.S.”, ou seja, qualquer intervenção de países terceiros na vizinhança imediata dos EUA é considerada um ato hostil. No ano seguinte, o bloqueio naval norte-americano a Cuba visava obviar à ameaça estratégica do posicionamento de mísseis soviéticos junto da fronteira norte-americana.
A Crise dos Mísseis de Cuba é considerada o momento mais perigoso da Guerra Fria, em que as duas superpotências mais se aproximaram de uma confrontação com armas nucleares, e a preocupação geopolítica dos EUA de então era semelhante à de agora de Putin: o receio de que uma aliança militar hostil se estendesse até à fronteira do país.
Recordemos que, para Moscovo, a própria existência da NATO é um anacronismo, pois não devia ter continuado a existir após o desaparecimento do Pacto de Varsóvia.
2 Também consigo compreender a necessidade de proteção das populações maioritariamente russas na Ucrânia através do reconhecimento da independência das repúblicas separatistas ucranianas da região do Donbass: Donetsk e Lugansk. Estas podiam ser uma ficção, mas desde que Putin limitasse a invasão às repúblicas separatistas que reconheceu, podia inclusivamente dizer que não tinha pisado solo ucraniano. Enquanto limitasse as ações à coerência da sua argumentação, mantinha a sua credibilidade. E, para que a Ucrânia não aderisse à NATO, bastava a ocupação das repúblicas separatistas, pois nenhum aliado iria aceitar um novo membro com conflitos por resolver com a Rússia. O mesmo aconteceu com a Geórgia em 2008.
3 O que não consigo compreender é como Putin – que disse no seu discurso de 21 de fevereiro deste ano que “a Ucrânia não é apenas um país vizinho, para nós, é uma parte inalienável da nossa própria história, cultura e vida espiritual, são os nossos camaradas, aqueles que nos são mais queridos, não apenas colegas, amigos e pessoas com quem antes servimos em conjunto, mas familiares, pessoas a quem estamos ligados pelo sangue, por laços de família” – tenha decidido ultrapassar as fronteiras das repúblicas separatistas e avançar sobre Kiev.
No seu discurso de 25 de fevereiro, Putin reiterou que “o nosso plano não é ocupar o território ucraniano, nós não queremos impor nada a ninguém pela força”, e afinal tratou os seus irmãos ucranianos ainda pior do que os georgianos em 2008. Porque esta invasão é decalcada a papel químico da invasão da Geórgia desse ano: também havia duas repúblicas separatistas cuja independência foi reconhecida pela Rússia – a Abkhasia e a Ossétia do Sul – e uma coluna militar russa dirigida a Tbilissi, a capital da Geórgia, tendo nessa altura circulado que o Presidente francês Sarkozy foi quem conseguiu demover Putin de atacar a cidade.
Desta vez ninguém conseguiu demover Putin de espalhar a desolação pela Ucrânia numa guerra fratricida, sobre a qual todos os cidadãos russos acabarão por ser obrigados a tomar posição: a partir de agora, a sua permanência à frente dos destinos da Rússia está indelevelmente ligada ao destino da guerra na Ucrânia. E cada dia que passa sem que a guerra termine perde preciosos pontos de popularidade junto das elites que o protegem e da população que nele votou para a liderança da Rússia.
Juntamente com ele, cai a pique o prestígio do exército vermelho: o “rolo compressor” temido por toda a Europa mostra-se incapaz de ocupar uma nação vizinha e isolada internacionalmente.
Subitamente, o tempo passou a correr contra Putin.