Esta crise pandémica, que já dura há mais de um ano, pôs a nu a enorme fragilidade e as deficiências do nosso SNS no que toca à sua desadequação de recursos humanos e de infraestruturas. Ao mesmo tempo, a falta de visão, de liderança, de capacidade de antecipação por parte do Governo tem estado bem patente, sendo que, depois de tanto tempo passado, já seria hora de não se estar sistematicamente a correr atrás do prejuízo. Estas seriam frases gastas, não fora o que elas contêm de grave no que toca à vida de milhões de portugueses. Já escrevi aqui sobre este tema, mas não deixarei de o lembrar e voltar a lembrar se o que estiver em causa for precisamente uma realidade que tem tanto de dura como de chocante e de deliberada ocultação.

Certamente nunca podemos esquecer as dezenas de milhar de mortos (mais de 17 mil) e os mais de 900 mil casos confirmados no dia em que escrevo este texto. Estas pessoas, que nem sempre receberam por parte dos serviços de saúde os cuidados que necessitariam, representaram uma pesada sobrecarga para um SNS impreparado, com escassos recursos humanos, exaustos e desconsiderados. E nunca será demais lembrar, que as respostas que se encontraram foram à custa da redução da actividade clínica – o mesmo é dizer, redução dos cuidados de saúde aos Portugueses! – e do esforço para além do admissível dos nossos profissionais de saúde. Ao fim de 16 meses, podem imaginar o que isso significa?

O Estado, as suas lideranças, não encontrou ainda, quase um ano e meio depois, forma de garantir cuidados de saúde atempados e de qualidade a todos os milhares de pessoas que deles precisam, seja a nível de rastreios e de prevenção, seja nos doentes mais vulneráveis, os idosos e os doentes crónicos e os doentes em fim de vida.

Alguns exemplos são disso bem demonstrativos: menos de 25% de cirurgias realizadas, menos 46% de consultas presenciais realizadas (o que equivale a milhões delas!) nos Cuidados de Saúde Primários, menos centenas de milhares de pessoas a cumprirem os rastreios para os cancros do colo do útero, da mama e do colón e recto (dados da Ordem dos Médicos). O plano estratégico para os Cuidados Paliativos para o biénio 2021/22 está há sete meses para sair e ainda não é conhecido e milhares de portugueses continuam sem acesso a estes cuidados de saúde. O Governo só se lembrou de dizer que eles eram prioridade política – talvez para calar más consciências – quando estiveram apressada e erradamente a aprovar uma lei de eutanásia?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em plena 4ª vaga, com casos a ultrapassarem os 4000/dia, e ainda que com uma mortalidade felizmente reduzida face à anterior, voltamos a ter mais pressão sobre os serviços de saúde. E assim se repete o triste fado: só está a haver resposta para os doentes Covid porque se deixam milhares de outros doentes para trás, numa clara falha do nosso Estado social central.

O certo é que, de algum modo, com todo o foco organizativo e mediático na pandemia, há milhares de portugueses que padecem de outras maleitas e que se tornam invisíveis. Quase apetece dizer quão conveniente é esta parafernália Covid para que o Governo, o Ministério da Saúde, a DGS tenham uma cortina de fumo, não falem das questões em torno de problemas sérios como a diabetes, os atrasos nos rastreios do cancro, as consultas e cirurgias em atraso, dos doentes em fim de vida sem apoios, nem das respostas que lhes pretendem oferecer em tempo de crise. Porventura esses doentes deixaram de precisar de ser cuidados?

Dos Portugueses, da sociedade civil, espera-se exigência e responsabilização das autoridades – algo que em Portugal teima em rarear -, espera-se dever de cidadania na hora de assacar culpas a quem as tem e de procurar respostas efectivas que vão para além da rigidez ideológica panfletária.

Falaremos e escreveremos as vezes que forem necessárias, porque em Saúde não há doentes invisíveis, não há doentes de primeira e de segunda. Quando o Estado continua a falhar, não contribuiremos para deixar pessoas negligenciadas e para trás.