Portugal tem duas constituições. A Constituição da República Portuguesa (CRP), que fixa os limites da legalidade. E uma Constituição oculta e não-escrita que determina, desde a fundação do regime, os critérios da legitimidade política. O que consta dessa Constituição não-escrita? Quatro simples princípios. [princípio 1.º] O PS é o guardião do regime e defender o regime é defender o PS. [princípio 2.º] Portugal é de todos mas o Estado é dos socialistas, pelo que só a estes se pode confiar a administração pública. [princípio 3.º] A legitimidade vale mais do que a legalidade – e, por isso, sempre que o respeito do normal funcionamento das instituições democráticas for prejudicial aos seus interesses, o PS pode agir fora do quadro institucional. [princípio 4.º] A única sociedade livre é a que depende do Estado e, consequentemente, do PS.
Em suma, esta Constituição não-escrita indica-nos que, independentemente do quadro institucional vigente, quem manda é o PS – governem ou não, são os socialistas quem decreta as prioridades do país, quem detém a legitimidade, quem avalia a legalidade, quem controla os rumos políticos da nação.
Incompatível com o programa de ajustamento, essa Constituição não-escrita está, desde 2011, suspensa (o que não significa que esteja totalmente erradicada). De resto, o próprio Mário Soares o assinalou, ao afirmar que vivemos numa ditadura “sem se perceber que é uma ditadura”. Claro – ditadura é, por definição, a suspensão da ordem constitucional e ninguém poderia perceber tratando-se de uma constituição oculta. Ninguém lhe prestou atenção. Mas o aviso estava feito: atravessamos um período de interregno constitucional. Agora, sem troika a tapar o caminho, a prioridade socialista é só uma: a reposição da ordem constitucional.
Essa é a missão que Soares depositou em António Costa. Por isso, não importa o que pensa o presidente da Câmara de Lisboa ou o que o distingue ideologicamente de António José Seguro. Isso não tem importância nenhuma. Só interessa mesmo a legitimidade natural que, por caridade mediática, todos lhe parecem reconhecer. Até porque, já se lê por aí, Seguro atraiçoou o partido – terá aceitado negociar, de igual para igual, com o PSD, ou seja, o equivalente a acatar a suspensão desta Constituição não-escrita e a menorização do PS.
A urgência socialista é, portanto, fácil de compreender. A suspensão dessa ordem constitucional oculta deixou o regime entregue a si próprio, leia-se às suas instituições em vez de aos seus “pais fundadores”. Acabou a legitimidade sem votos. Extinguiu-se a autoridade natural dos Capitães de Abril. Desapareceram os calendários eleitorais estipulados em função dos timings socialistas. E alheou-se o Presidente da República dos caprichos tácticos do PS.
Mas se a urgência é fácil de compreender, o equívoco em que caiem Soares e António Costa é também elementar: o país não quer a reposição dessa ordem constitucional. É que, vista de outro ângulo, a perda da supremacia do PS é um passo em frente na consolidação democrática do regime. Para o bem e para o mal, os três anos de programa de ajustamento foram também anos de afirmação das nossas instituições democráticas. Nunca os equilíbrios institucionais do regime foram tão importantes e tão discutidos. Nem nunca foram tão valorizados. Ora, não há dúvida que, nesse aspecto, a mudança aconteceu mesmo: o escrutínio político aguçou-se, o despesismo não voltará a ser tão fácil, e ninguém voltará a sobrepor-se às instituições como antes.
Assim, em 2011, essa Constituição não-escrita ficou suspensa. Hoje, parece claro que não tem condições para ser reposta, apesar da vontade de Soares. Costa até se pode tornar líder dos socialistas. O PS até pode ganhar as próximas legislativas. Mas o regime não será mais dos socialistas.