Um pouco longe, a leste, numa reencenação de Ivan o Terrível, o fogo da destruição lavra numa guerra total que vai consumindo, bem debaixo dos nossos olhos, a vida e os bens na Ucrânia, numa reedição em menos de um século, do pesadelo nazi que julgávamos definitivamente enterrado na subcave da História. Repetição dramática que associa ainda o indesculpável comportamento do cidadão alemão na altura de Hitler – indiferente à sorte dos judeus que, todos os dias, desapareciam do seu lado – às explicações que hoje ouvimos para não se intervir no caminho de Putin.

Mas se a Ucrânia é, agora, um momento tragicamente negro da História da Humanidade, um outro incêndio mais perto das nossas casas pode ocorrer daqui a alguns dias no fecho da eleição presidencial francesa. O problema está na escolha que os franceses vão fazer a 24 deste mês de Abril de 2022 pois essa escolha poderá influir não só na forma como eles franceses irão ser governados, como resultará, a consumar-se, numa mudança radical da vida do Continente Europeu e o início da tentativa de regresso a uma velha Europa das Nações.

Que não haja dúvidas: as eleições francesas podem vir a marcar o fim da História da Europa como um projecto de convivência pacifica para o sucesso de povos que se digladiaram ao longo de milhares de anos. O que conhecemos da liberdade de nos podermos movimentar pessoal e profissionalmente e o valor que reconhecemos no respeito por regras comuns dentro de um dos maiores mercados do Mundo poderá apagar-se progressivamente face à reposição das fronteiras, e à reintrodução da supremacia das múltiplas leis e regras nacionais que Le Pen promete promover para a França.

Aliciante que para alguns pareça ser esta perspectiva – não só no eleitorado francês, mas para as diferentes versões das extremas direita e esquerda de outros Países – não é certo que a vitória de Le Pen possa contribuir para melhorar a vida dos franceses e menos ainda a dos nacionalistas de diferentes origens. Marine Le Pen propõe-se fechar a França e inutilizar os mecanismos de solidariedade europeia. Isto está escrito no seu programa e é repetido verbalmente, ainda que com cuidado e ponderação para não suscitar muitas reacções. Pondo fim à participação da França na NATO, Le Pen coloca em risco a segurança militar que protege a Europa da agressão russa. Ao desmantelar a União Europeia, destrói a força económica e política de uma das três potências económicas mundiais. Quem fica a ganhar?

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Para Marine Le Pen, a resposta é que ganha a França. E ganha porque recupera o direito a resolver, por si só, as suas dificuldades e pelo caminho poupa o dinheiro das contribuições para a Europa (argumento também utilizado pelos Brexiteers). Assim, retomada a independência, a França poderia pôr fim ao aumento do custo de vida, drama para o qual Macron é acusado de não ter sensibilidade. Quanto a expulsar radicalmente os estrangeiros, tema para o qual está prometido um referendo logo no início do mandato, é algo que é mais fácil de dizer do que fazer e que onde nenhum país democrático ou autoritário teve grande sucesso até agora, se exceptuarmos a Alemanha nazi.

Indiferentes às estatísticas económicas, muitos franceses, apesar da França ser a sociedade mais igualitária do globo, acham que Marine Le Pen vai resolver as injustiças perpetradas pelos ricos. Muitos estão mesmo convencidos de que Le Pen vai baixar o preço do gasóleo e promover a abolição do IVA. Também o problema do sistema de pensões que, tal como o português se encontra na falência, deixará de ser problema com a nova Presidente que até advoga a diminuição da idade de reforma. Razão tem António Costa para não querer ouvir falar de reformas. É só ver o que aconteceu ao pobre do Macron. O melhor mesmo é fazer de conta que não há problemas. As pessoas gostam disso. Como sabemos, a fé, mesmo no impossível, move montanhas, mas os amanhã que cantam, como também sabemos, terminam sempre em ressaca. Difícil de ver outra saída para tanta prodigalidade gaulista.

Como é óbvio, Le Pen não tem poder para controlar o preço do petróleo, nem a França terá os mesmos meios para lutar contra uma crise financeira global ou uma pandemia se estiver isolada no meio dos seus vizinhos. Mas muitos franceses acreditam em Le Pen, e a sua fé vai transformar-se em votos a 24 de Abril que podem fazer dela Presidente da França. E para os que acham que a vida continua e que Le Pen no Governo se vai conformar com as limitações da realidade, vale a pena relembrar o que diziam na Alemanha os Partidos de direita em 1933 quando convidaram Hitler para entrar num Governo de coligação. É que uma vez abertas as portas do inferno, o diabo toma conta das chaves.

O simples facto de eliminar Macron significa para muitos franceses, tanto da extrema-esquerda como da extrema-direita, libertar a sua comunidade da opressão, uma espécie de válvula de escape semelhante à que levou Luís XVI à guilhotina ou os monarcas europeus, na viragem para o Séc. XX, a serem assassinados pelos anarquistas como aconteceu com o nosso Rei D. Carlos. Como é possível ignorar que o mesmo movimento de ódio às elites pode levar o Presidente mais europeísta que a França jamais teve, a ser substituído por alguém financiado por Putin cuja missão primeira é a glória da Rússia, desígnio este que torna essencial eliminar a força da Europa?

Não deixa de ser curioso ver as simpatias da extrema-direita portuguesa e espanhola para com Marine Le Pen porque, olhando bem, os interesses dos camaradas franceses da União Nacional não vão exactamente no mesmo sentido dos seus correligionários de Portugal ou Espanha. Teremos provavelmente a repetição da desilusão que tiveram alguns dos nossos pais e avós em 1940, que, simpatizando entusiasticamente com Hitler, se viram forçados a preparar a defesa militar portuguesa para a invasão alemã do nosso País, que só não aconteceu porque a guerra virou para leste. A fraternidade entre nacionalistas tem estes problemas. Que sentem os simpatizantes lusitanos do VOX quando descobrem que, afinal, o VOX sonha com a conquista de Lisboa? Nacionalismo é isto mesmo: o que é bonito para os outros, pode ser muito feio para nós. Que o digam os ucranianos.

Claro que nós, não sendo franceses, não votamos em Le Pen ou em Macron, pelo que o que podemos fazer nesta fase não vai muito para além da expressão dos nossos receios e da força das nossas orações. Se o que os franceses querem é a eleição de Le Pen, os formalistas dirão que a democracia funcionou e que ninguém se pode queixar. Mas essa é uma verdade incompleta, já que o prejuízo cai sobre centenas de milhões de pessoas. E, neste caso, os culpados foram os dirigentes europeus a quem, durante décadas, faltou a coragem de assumir que a Europa era um projecto comum e não uma colagem de interesses nacionais.

O fim da História da Europa que a eleição de Le Pen propiciará vai fazer Putin esquecer os desaires na Ucrânia porque desta vez acabará por ganhar a taluda do século. A Europa tornar-se-á num jardim para o seu passeio triunfal e Paris poderá ver a reedição do desfile a que Hitler teve direito em 1940 no Champs Elysées, só que desta vez com Putin, sem tropas e sem tanques, só com flores oferecidas por Marine. Quanto ao último cidadão europeu, aquele que lutou até ao fim das suas capacidades físicas pela Europa, o título pertencerá por direito próprio a Zelensky, o Moisés da era moderna, que liderou o seu povo em direcção à terra prometida. Tal como Moisés, também Zelensky pode não conseguir lá chegar, desta vez porque a terra prometida desaparecerá mesmo para todos.

Se este cenário tiver sido apenas um pesadelo, a Europa ganhará certamente um novo e substantivo alento na noite de Domingo.