A vitória de Donald Trump representou, aos olhos de muitos, o princípio do fim de uma ordem mundial baseada no multilateralismo e no comércio livre. Foi também para outros, o princípio do fim da ordem Ocidental dominante, baseada em alianças formais e substanciais – a Nato e a comunidade de valores transatlântica, com ramificações na Oceania.
Mentes mais complexas viram no acontecimento a vitória do homem comum excluído dos benefícios da globalização, paradoxalmente conseguida através da eleição do homem menos comum de todos, um multimilionário cuja fortuna familiar e a sua própria se fizeram no sector da construção e do imobiliário. Talvez as pessoas estivessem fartas, talvez a cintura da ferrugem tivesse votado em quem quer que fosse que compartilhasse o seu desdém, a raiva, o ódio pelos políticos do sistema, de que Hillary Clinton é o óbvio paradigma; talvez tenha calhado ser Trump, mas isso até já os Simpson tinham previsto no início do século.
Trump (entre outras coisas) prometeu uma luta sem tréguas à globalização e aos acordos comerciais multilaterais, prometendo em troca negociar com cada parceiro comercial para a obtenção do máximo de vantagens possíveis para os EUA – “America great again”.
O presidente norte-americano está a cumprir, ou pelo menos a tentar cumprir, a sua agenda. Em Maio, o New York Times fez uma espécie de compilação das promessas, cumpridas, em vias de o ser, ou adiadas.
Trump prometeu limitar a imigração ilegal e em Junho o Supremo Tribunal confirmou uma versão suave da proibição de emissão de vistos a nacionais de seis países muçulmanos e à Venezuela, neste caso apenas para membros da administração. Promessa cumprida. Prometeu renegociar o acordo nuclear com o Irão, tendo para já imposto sanções contra a vontade dos seus aliados europeus. Prometeu construir um muro na fronteira com o México e fazê-lo pagar por ele. Foi dada a ordem, falta o resto. Prometeu diminuir os impostos: feito. É a mais importante realização da sua agenda. Trump quer repelir o “Affordable Care Act”, a reforma da segurança social de Obama, mas falta a aprovação no Senado (a que se opôs, entre outros, McCain). Aumentou as deportações de imigrantes ilegais, cumprindo o prometido.
Ah, e fez dos EUA o grande poder pária da luta contra o aquecimento global, ao retirar o país do Acordo de Paris.
Ainda no plano global, também retirou os EUA do acordo Ásia-Pacífico, liquidou (pelo menos congelou) o TTIP, acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos, denunciou a Nafta, com Canadá e México, e iniciou “guerras comerciais” com… quase todo o Mundo. Depois do rápido “romance” de Trump e Jean-Claude Juncker, a escalada da “guerra” com a Europa foi evitada, por enquanto; de momento, o foco está na China.
Donald Trump, o novo “sheriff in town” (xerife na cidade), quer impor a sua lei, a lei do mais forte. E o mais forte, diz ele, é a América. É capaz de ter razão, aliás. Com 11 porta-aviões e 2300 M1 Abrams, sem esquecer o restante armamento convencional e nuclear, os EUA são a maior potência militar da História. Mas isso não chega para o Presidente norte-americano, que quer impor a paxamericana na versão rendição económica global. E para isso conta com aquilo que diz ter mais do que ninguém, capacidades negociais únicas, desenvolvidas em dezenas de anos de vida profissional como empresário. Impor a sua vontade, fazer o parceiro perder para que a América ganhe mais. “America great again” será a soma dos jogos (acordos) bilaterais, de resultado positivo para Trump e negativo para os outros, o resultado perfeito.
Tudo parece estar a correr bem. Mas não está. Trump pode perder o jogo mais importante. E não, não falo da nomeação em risco de Brett Cavanaugh para o Supremo Tribunal, nem sequer da tão prognosticada e sempre adiada impugnação.
O risco são as eleições de 6 de Novembro, em que será disputada a totalidade dos 435 lugares na Câmara dos Representantes e 35 dos 100 mandatos no Senado. É simples: se os Republicanos perderem a maioria nalguma das Câmaras do Congresso norte-americano, diminui muito a capacidade do Presidente norte-americano de cumprir realmente a sua agenda – enfraquecer o multilateralismo, enfrentar e afrontar aliados e inimigos no plano comercial, defender uma América endividada mas poderosa, alheia a valores e princípios fundadores mas arrogante na cena mundial.
O mesmo sucedeu a Obama, por exemplo, e as críticas relativas à falta de cumprimento das promessas que fez esbarram nisso mesmo: na falta de uma maioria parlamentar.
Ora as previsões actuais para a eleição a ter lugar dentro de pouco mais de um mês, não são agradáveis para os Republicanos: de acordo com a sondagem permanente da ABC News, as hipóteses dos Democratas virem a controlar a Câmara dos Representantes é de 80% contra 20% dos Republicanos. Já no Senado inverte-se a tendência, pois a possibilidade de controlo pelos Democratas é pequena (31 contra 69%).
Se os Representantes caírem para os Democratas, muito mudará na presidência de Donald Trump. E até o que agora não interessa – a nomeação de Cavanaugh, o início de um eventual “impeachment” – perderá importância à medida que se tornar mais exequível. É um paradoxo à medida de Trump: a eventual perda do controlo do Congresso, ao impedi-lo de levar por diante várias promessas, tenderá a aproximá-lo dos muitos eleitores repelidos pela sua verve desabrida, modos rudes, “tweetismo” frenético e a ameaça contra o equilíbrio global.
Em Novembro não há apenas eleições para o Congresso norte-americano, em Novembro está em jogo o planeta, a luta contra o aquecimento global e a escolha entre a cooperação frutífera e pacífica e um encarniçado nacionalismo, nativista e proteccionista. Trata-se de saber se o Presidente norte-americano consolidará a mudança do paradigma global, arrastando consigo, pelo exemplo do país mais rico e poderoso do Mundo, sucessivos regimes, cada vez mais movimentos populistas, numa onda poderosa de anti-liberalismo.
Porque se é certo que são muitas as razões para o crescimento dos populismos e dos nacionalismos polarizados e extremados, mais certo ainda é que o sucesso de uma fórmula que erigiu em símbolo da luta contra o sistema o mais acabado produto desse sistema, não deixaria de seduzir ainda mais prosélitos.
Em Novembro, nas eleições americanas, é muito mais do que o futuro da América, “great” ou não “great”, que estará em causa: é o do Ocidente, de Portugal, de todos nós.