É sempre extraordinariamente educativo ver a classe política portuguesa a alinhar-se para, muito direitinha e obediente, dar um coletivo flic flac à retaguarda. Para quem se diverte com estas coisas, como é o meu caso, a visita de João Lourenço a Portugal foi uma oportunidade rara de assistir a vários números de equilibrismo que desafiam a anatomia humana e a lei da gravidade. O que ontem era maravilhoso, hoje é abominável; o que ontem era virtude, hoje é vício; o que ontem era atração, hoje é repulsa.

As coisas, realmente, mudaram muito em pouco tempo. Veja-se o exemplo de Rui Moreira. Sem um sinal de hesitação no olhar, o presidente da Câmara do Porto entregou as chaves da cidade ao Presidente angolano e, num discurso emocionante, elogiou “o caminho” que João Lourenço “tem trilhado, concretizando aquilo que o povo angolano espera e que o vosso hino afirma, honrando o vosso passado e a vossa história, construindo através do trabalho um homem novo”.

Presume-se que esse “homem novo” não seja Sindika Dokolo, marido de Isabel dos Santos, que é agora uma das arqui-inimigas de João Lourenço, simbolizando tudo o que estava errado com o regime do seu antecessor. Quando o presidente de Angola era José Eduardo dos Santos, o mesmíssimo Rui Moreira decidiu atribuir uma medalha de mérito ao genro do ditador, tendo como justificação “uma atuação extraordinariamente relevante ao nível cultural”. Essa relevantíssima “atuação” traduzia-se, além de uma solitária exposição, na compra à autarquia, através da fundação do marido de Isabel dos Santos, da casa Manoel de Oliveira por 1,58 milhões de euros. (Pequeno detalhe sobre as maravilhas deste negócio para a cidade: as obras já deveriam ter terminado, para que a sede da fundação abrisse no segundo semestre de 2017, mas as portas ainda estão firmemente fechadas. Mais: a Câmara diz agora desconhecer qualquer nova data para a inauguração e nem sequer sabe se se mantém a intenção de ter a sede  da fundação em Portugal. “Não tem havido contactos”, lacrimejou a autarquia em declarações ao JN, vendo assim desaparecer o seu precioso medalhado.)

Naturalmente, Rui Moreira não está sozinho. Durante anos e anos, a classe política portuguesa olhou com indisfarçável avidez para qualquer cêntimo que chegasse de Angola, sem fazer perguntas sobre a sua origem ou justificação. Agora, aparecem todos muito chocados ao ouvir do novo Presidente angolano a surpreendente notícia de que essa justificação pode ser duvidosa e essa origem criminosa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Subitamente muito solícito, António Costa prometeu a João Lourenço “toda a colaboração e cooperação judiciária, policial e fiscal” (três em um, portanto) na recuperação do dinheiro que foi retirado de Angola por aqueles que antes nos garantiam serem legítimos homens e mulheres de negócios e que agora, pelos vistos, se transformaram em cleptocratas. Transpirando santidade, o primeiro-ministro jurou ao seu convidado que “o que importa é dar o seu a quem é seu” (a língua portuguesa vai ter que desculpar António Costa) e que “o dinheiro que pertence a Angola, a Angola cabe que seja contabilizado” (e aqui vai ter que o desculpar outra vez).

É uma transformação mágica. O dinheiro que, há dias, a elite portuguesa elogiava e agradecia é agora renegado como o produto de um saque. E os antigos aliados angolanos da classe política portuguesa são agora adversários a perseguir. Mas trata-se, obviamente, de uma perseguição selectiva: o maior ou menor empenho depende, como sempre, da posição que o potencial alvo ocupa em Luanda. Os políticos portugueses rejubilarão com processos judiciais a quem foi próximo de José Eduardo dos Santos; mas encolher-se-ão com o “irritante” provocado por processos judiciais semelhantes que atinjam quem é próximo do novo Presidente.

Tudo isto já era de esperar. Sem espinha dorsal, sem princípios e sem vergonha, os políticos portugueses acenam a qualquer pedido que chegue do poder de Luanda, seja este ou outro. E, tremendo num canto, esperam que ninguém repare nas suas acrobacias morais. Talvez seja conveniente chamar-lhes a atenção para um ponto: toda a gente repara.