A corporação queixou-se ao tribunal. O tribunal deu-lhe razão. O estatuto da corporação ficou ainda mais blindado. Entretanto os cidadãos comuns, sobretudo aqueles que determinadas circunstâncias da vida tornaram mais vulneráveis, ficaram expostos a riscos ainda maiores.
Não, não estou a escrever sobre a recente decisão do Tribunal Constitucional (TC). Eu sei que esse devia ser o tema desta crónica. Na verdade até tentei começar por aí. Ouvi várias vezes Joaquim Sousa Ribeiro a explicar a decisão do tribunal a que preside e contemplei pela enésima vez as curvas e contracurvas da tapeçaria de Batarda que cobre a parede da sala mais mediática do TC e que invariavelmente me parecem muito mais legíveis que a fundamentação jurídica das decisões do TC.
Mas na verdade ao ver e ouvir Sousa Ribeiro não é Sousa Ribeiro que eu vejo e ouço mas tão só um País onde por demissão, hipocrisia, espírito corporativo, calculismo e medo os juízes acabaram a ocupar o espaço que devia ser do legislador, dos médicos, dos professores, dos pais… E nesse domínio da justicialização das nossas vidas este despacho do TC nem é o mais simbólico. É claro que é chocante ler-se no acordão do TC que “medidas de caráter tributário oferecem melhores garantias de fugir a uma censura” mas o caso a que me refiro no princípio deste texto é outro.
Trata-se de um recente despacho do Tribunal Administrativo de Lisboa que impede os técnicos das ambulâncias de administrarem injecções de glicose a vítimas de hipoglicemia. Segundo os especialistas qualquer um aprende em escassos minutos a dar esse tipo de injecções e como para os diabéticos essa injecção pode fazer a diferença entre a vida e a morte, os seus familiares têm sido ensinados pelos serviços de saúde a ministrá-la.
E assim, por via judicial, chegámos ao paradoxo de pais, mães, filhos, maridos, mulheres, vizinhos, tios e primas, analfabetos ou licenciados, poderem administrar as injecções de glicose e de os técnicos de ambulância e de emergência estarem impedidos de o fazer. E não o podem fazer – note-se que só o faziam sob supervisão médica – porque o tribunal entendeu que através dessa proibição acautelava os direitos dos enfermeiros cuja Ordem avançou com uma providência cautelar que visa impedir outros técnicos de emergência de administrarem injecções de glicose a diabéticos.
Por mais esdrúxulo que tal possa parecer após este despacho, em Portugal, nos casos de hipoglicemia convém administrar a injecção antes de se chamar a ambulância pois caso contrário tem de se ficar à espera de um profissional de saúde não abrangido pelo despacho do Tribunal Administrativo de Lisboa o que para um diabético pode significar a morte. Convenhamos que ao pé disto o último acórdão do TC é uma ninharia!
Como chegámos aqui? A esta desmesura dos tribunais na vida dos cidadãos e do País?
Em Portugal neste momento mantém-se aberta uma maternidade, a Alfredo da Costa, porque um tribunal entendeu que era da sua competência decidir não só que fechar a MAC era uma «afronta directa e injustificável do bem jurídico “saúde pública’» como ainda que o serviço de partos deveria funcionar na MAC e não no Dona Estefânia.
Temos a Procuradoria-Geral da República a entender que os quadros de Miró “são um acervo que não deve sair do património cultural do país”, o que nos leva ao absurdo de vermos a PGR e não a tutela da Cultura a determinar o que é ou não o património cultural do país. E em sucessivos capítulos continua ainda a correr em vários tribunais a novela da prova de avaliação dos professores. Ou mais concretamente de dar como provado que a realização da prova de avaliação causa “danos irreparáveis” aos professores. O que do ponto de vista pedagógico não deixa de ser fabuloso pois os professores que não podem fazer a prova por que ela lhes causar “danos irreparáveis” são os mesmos que avaliam todos os anos os seus próprios alunos.
Confrontados com esta espécie de pequeno florilégio (há anos que ando à procura de um tema que me permita usar esta palavra!) de casos recentes em que a Justiça, cada vez mais enfastiada com os assuntos jurídicos propriamente ditos (e com estes frequentemente ‘resolvidos’ através de questões processuais), acabou a tratar do que devia ser matéria dos políticos, dos técnicos e dos cidadãos, é tentador ficarmos pela crítica ao autismo estatista desse grupo de pessoas que vive numa redoma onde se acredita que a realidade se cria à força de decretos-lei.
Uma redoma onde não existem despedimentos, os ordenados caem sempre no dia certo, e cujos habitantes escrevem com uma ligeireza ofensiva para os que estão do lado de fora desse mundo, como agora fizeram os juízes do TC que “continuará a sujeitar-se quem recebe remunerações salariais de entidades públicas um esforço adicional que não é exigido aos titulares de outras espécies de rendimentos”. O esforço adicional do desemprego exclusivo do sector privado não conta para nada?
Também é mais ou menos óbvio que os tribunais são particularmente sensíveis ao argumentário inter pares das corporações e assim chegámos ao absurdo da providência cautelar da Ordem dos Enfermeiros ter sido aceite.
Igualmente incontornável é o facto de a justiça, sobretudo ao nível do TC, não escapar à regra nacional da superioridade moral da esquerda: um estudo da autoria de Nuno Garoupa, Sofia Amaral Garcia e Veronica Grembi, que analisou as 270 decisões do TC relativas à fiscalização preventiva entre 1983 e 2007, revela, e cito o artigo que o Jornal de Notícias lhe dedicou, que “os juízes do Tribunal Constitucional são influenciados não só pela filiação ideológica e partidária como também pela presença do seu partido no Governo. O estudo declara que os juízes nomeados pela Esquerda estão ‘fortemente associados’ ao voto de inconstitucionalidade. Mas que uma associação entre os nomeados pela Direita e o voto pela constitucionalidade ‘é fraca’. (…) No entanto, o trabalho conclui ainda que esta aparente maior sensibilidade aos princípios da Constituição por parte dos juízes de Esquerda tende a esbater-se quando o seu partido é Governo. Os votos a favor da constitucionalidade aumentam de 35% para 75% quando os socialistas estão no poder, enquanto que não há grande variação nos votos dos juízes de Direita, estando ou não no poder.”
Mas sendo tudo isto verdade, a verdade que aqui nos trouxe é bem mais grave: somos uma sociedade que identifica crime com erro e valores com lei. Assim se algo não for considerado crime passa automaticamente a aceitável quando não a defensável. Consequentemente, das famílias à classe política, a afirmação dos valores que obriga à tomada de posição deu lugar à transferência para os tribunais do odioso da decisão.
Foi assim que nas últimas autárquicas, por demissão do parlamento, tivemos candidaturas impugnadas nuns tribunais quando noutros locais do País outros tribunais decidiam em sentido contrário. E assim tem sido com os sucessivos orçamentos desde que a crise começou: a dimensão das reformas que é necessário fazer e a indispensabilidade de algumas delas, sobretudo se não quisermos pedir ajuda externa de novo nos próximos anos, nem transformar as actuais gerações de contribuintes nos pensionistas mais ludibriados e miseráveis de sempre, teriam obrigado a um acordo entre os partidos que subscreveram o memorando de modo a que a questão dos chumbos do Constitucional não se colocasse com este dramatismo. Mas aconteceu precisamente o contrário.
E o resultado é o que agora se vê e sobretudo o que dentro de pouco tempo se verá. E que será bem pior. Porque se agora temos pela frente um problema orçamental e mais injustiça fiscal, dentro em breve o TC será vítima da armadilha em que caiu ao fazer de parlamento não eleito. É apenas uma questão de tempo: se e quando o PS tiver uma maioria expressiva o TC acabará nas ruas da amargura – que nessas coisas como em tantas outras quem se mete com o PS leva! –, ou então o PSD e o PS acabarão a decidir casuisticamente a alteração dos poderes do TC, o que não é desejável.
Nesse dia, se olharmos bem nas curvas da tapeçaria de Batarda encontraremos um sorriso escarninho.