Ao longo dos últimos anos tenho tentado, com espírito construtivo, ir apontando vários aspetos que poderiam ser e algumas vezes foram melhorados. Em fevereiro de 2020, alertei para que não estávamos preparados. Nem nós, nem ninguém. Só que no nosso caso houve quem tivesse desvalorizado o risco iminente e nos tenha tentado convencer de que tudo estaria preparado, tudo seria fácil, na hipótese remota de alguma vez cá chegar a doença chinesa. Primeiro erro que condicionou 2020 e 2021. Comentar o desconhecido é um exercício terrível.
O Governo, debaixo do chuveiro de realidade admitiu o óbvio, “tememos não estar preparados” e fez promessas, que julgou poder cumprir para, malgré tout, o pior estar sempre para vir e o “controlado”, com 9000 casos “malignos” em cada dia de janeiro de 2021, passou de rompante a mais de 37.000 casos diários, agora “benignos”.
Não leiam no que acabei de escrever outra coisa que não seja a demonstração de como é difícil manter uma mensagem percetível e coerente sob cenários que não se conseguem antecipar, em variação constante, e sempre com receio de afrontar as expetativas do “politicamente correto” sem perder a credibilidade escorada na interpretação científica possível da realidade conhecida. A tudo isto acresce a falta de capacidade para responder com alterações mais estruturais do que conjunturais.
No essencial da resposta à pandemia, salvo um momento de escassa, bem-vinda e inesperada ajuda da Alemanha, temos estado sós. A Europa tem demonstrado não ter política sanitária comum. O princípio da subsidiariedade em medidas de saúde, em termos pandémicos, tem sido uma desgraça. As mensagens do ECDC só servem para quando dá jeito, incluindo em Portugal. Os controlos fronteiriços são à vontade de cada freguês, a EMA é sistematicamente desautorizada e estamos em política sanitária sob condução política e nada técnica. Lembram-se da insensatez que foi e o tempo que se perdeu a discutir a possibilidade de emitir um certificado europeu de imunidade? Não era evidente que nunca seria possível atestar sobre a imunidade sem a realização de testes complexos e nem sempre fiáveis?
Dois exemplos podem ilustrar a incapacidade de resolver com rapidez problema identificados.
Eu e outros, temos vindo a alertar para as enormes dificuldades que o Governo de Portugal tem tido para comunicar eficazmente com os cidadãos. Alertados para esse facto, foi criada uma uma task force de ciências comportamentais aplicada ao contexto da pandemia de COVID-19, Despacho n.º 3027/2021 da Ministra da Saúde, publicado em 19 de março, de que não se conhece trabalho publicado. Na verdade, sabe-se lá porquê, o Despacho criador não lhes impunha um prazo – erro primário na governação – e imagino que, apesar de ter a sua coordenação entregue a uma académica que muito prezo e cuja competência é generalizadamente reconhecida, o mandato lato e alguma falta de meios e atenção estarão a perturbar a atividade desta força de tarefa. Ao ouvir o que tem sido a comunicação do Governo, parece-me que ninguém liga a esta task force.
Outro exemplo. Sendo certo que falta enquadramento legal para lidar com pandemias e sendo evidente que esse dado é ainda mais relevante no momento em que as competências jurídicas e a legitimidade política do Governo em exercício têm de ser postas em causa, seria importante ter mecanismos automáticos que não dependessem do Parlamento e do Presidente da República. Foi criada uma comissão técnica para o estudo e elaboração de anteprojetos de revisão do quadro jurídico vigente em função da experiência vivida durante a pandemia da doença COVID-19. Iniciou funções em 1 de julho (Despacho 63/2021 do Primeiro-Ministro) com mandato para apresentar trabalho em 31 de outubro – assim, sim – mas de que não se conhecem resultados – assim, NÃO.
Há que sair deste conformismo das comissões, grupos de trabalho, task forces e outros ajuntamentos de missão que se vão inventando para nada resolver.
Os políticos adoram inimigos. O “inimigo” que é a cola para quem combate está em todo o lado, tem mudado, com a mesma naturalidade com que um vírus muta, do medo à desinformação, passando para acabar nos próprios políticos, incapazes de sair da teia que constroem e onde se enrolam. O que nos deve interessar é que o problema central, o “inimigo”, não está na pandemia, mas sim na base de trabalho, a de um SNS que em Portugal estava já, marcadamente desde 2018, em perda de capacidade de resposta e de reputação.
Estamos em campanha eleitoral e vai ser mais fácil e apetitoso andar atrás dos disparates que se são acumulando, dos “deslizes” sistemáticos de cada dia que passa. Mas cada dia é novo dia e os dias que temos são a soma dos problemas que se deixaram acumular. No que à saúde disser respeito, o que deve ser julgado não são os dois últimos anos que apenas destaparam todo um percurso de inação, má estratégia e desleixo que tem sido a marca da governação de António Costa. O que interessa denunciar é que tivemos, desde novembro de 2015, um Governo que tem sido menos competente no que envolveu a saúde dos portugueses. Por culpa de um Primeiro-Ministro que só descobriu a importância da saúde pública depois de meses de pandemia, de Ministros das Finanças que ainda não perceberam que a manutenção do estado de saúde da população é um ativo financeiro e económico e de um ministério da saúde que vivendo mergulhado nas crises dos momentos, não quis nem pôde antecipar a evolução das respostas necessárias com medicamentos e tratamentos mais caros, mais doenças, um aumento de pessoas idosas e fragilizadas e tudo isto com estruturas decrépitas em alguns locais, faltas de materiais, recursos humanos desmotivados e em debandada, em suma, com uma tremenda crise no acesso a cuidados de saúde que se vai agravar nos próximos meses e anos. O que os eleitores querem ouvir são propostas para o fim da degradação constante do SNS. A pandemia vai passar. E depois? O que vai restar do sistema de saúde e o que se vai fazer para o recuperar?
Depois de olhar para trás queremos que nos apontem o caminho para a frente.
PS. Para quem tem, não perca “Don´t Look Up” na Netflix. Uma metáfora satírica. Está lá tudo. O final até pode ser irrelevante. O trajeto descreve aquilo em que querem que as sociedades se tornem ou talvez já sejam. Mas há quem resista.