Não há palavras para descrever com justiça a entrevista que o primeiro-ministro concedeu à revista do Público; só mesmo citando. António Costa, cujo braço direito havia apelado a uma reedição da ‘geringonça’ um dia antes, veio acusar o Bloco de Esquerda de mentir sobre a ausência de acordo escrito para esta legislatura (“já estou um bocado cansado de ouvir a lengalenga de que foi o PS que não quis”), criticar Rui Rio por “adoptar a estratégia da guerrilha” e não ter “pensamento nenhum sobre qualquer matéria de fundo da sociedade portuguesa” e, de seguida, brindar o leitor com os seus intensos conhecimentos sobre a indústria do calçado, dos “insufláveis para diversão” e da enologia (“há trinta anos era preciso ter atenção ao vinho que se pedia para ter a certeza que era bom”).

Está, comprovadamente, perdido.

Ao longo de sete páginas de conversa, António Costa disparou em todas as direções, não acertou em alvo algum, justificou-se, indefiniu-se, parafraseou Mark Twain, criticou a “bolha político-mediática” onde ele próprio vive há décadas e ainda ofereceu uns quantos trunfos ao PSD.

Voltemos às citações, que não há outro remédio.

Segundo o Público, Costa caracteriza o comportamento de Rio “como o de alguém que se adapta em função do ambiente político e dos títulos dos jornais”. Lendo a entrevista, é o que consta. Mas não deixa de ser algo hipócrita que Costa, um político acostumado a pressionar e influenciar jornalistas, venha acusar Rio (e logo Rio) de ser permeável aos media. Mais: com que legitimidade é que Costa critica o posicionamento de alguém “em função do ambiente político”, quando é ele o primeiro-ministro cuja reação a 65 mortes em incêndios foi reunir um focus group para medir níveis de popularidade? Não se entende, nem se inventa. Se há coisa que ditou o mandato do atual governo foi o mediatismo e a difusão de spin, até porque pouco mais fez. Vimos isso na relação com Bruxelas, que era para “virar a página” mas acabou com um ministro a encabeçar o Eurogrupo, com o Infarmed, que “ia para o Porto” mas nunca foi, com o aluguer do Panteão para festas, que “o governo desconhecia” mas tinha um secretário de Estado à mesa, entre outras memoráveis peripécias.

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Sobre o cenário parlamentar, Costa nega a existência de uma “fragmentação” e recorda que na União Europeia “partidos com mais de 20% devem contar-se pelos dedos das mãos”. Rio, que teve 27% nas últimas eleições, apreciará a referência. Costa, por sua vez, desvaloriza o facto de não ter maioria absoluta e afirma que o drama é “que isso impõe uma grande responsabilidade ao governo, mas também aos partidos da oposição”, o que é novamente hilariante dado o seu desprezo por essa responsabilidade quando esteve ele na oposição a um governo minoritário, em 2015.

Do princípio ao fim, não se percebe patavina do que António Costa quer dizer ao país. Parece o acusado de cada acusação que faz. Defende que “não podemos confundir” a realidade nacional com a “coreografia política”, quando foi ele o maior coreógrafo dessa dança, o maior responsável por vivermos neste país dual, que celebrou a Web Summit de smartwatch no pulso enquanto um surto de legionella afetava hospitais sem manutenção nos ar-condicionados, que vai ao teatro de São João quando suspendeu as visitas a lares e prisões da região, que apresentou o “programa de ação para a transição digital” na semana em que se isolaram doentes em casas-de-banho e o maior hospital do Porto ficou “sem capacidade” ao fim de dois infectados com um vírus global. É este Portugal, de capa lustrosa e encapado enfermo, que o Partido Socialista entregou ao fim de meia década de governação. E é a este Portugal que Costa já não tem nada para dizer.

Ele, que era um “construtor de pontes”, cansou-se da esquerda e zangou-se com o PSD. Ele, que era um “grande ativo eleitoral do PS”, perdeu contra o governo “da troika” e não conseguiu maioria absoluta depois de quatro anos de crescimento económico, estabilidade política e uma oposição de rastos. Ele, no fim de contas, é tão duplo quanto o país que criou.

Após ler esta sua entrevista, lembrei-me de uma anedota partilhada por um amigo de esquerda. Dizia assim: o que faz o líder da União Soviética quando um comboio pára a meio caminho? Se for Lenine, fuzila-se o maquinista; se for Estaline, enviam-se os passageiros todos para o gulag; se for Brejnev, descem-se as cortinas para ninguém perceber que o comboio parou. Ora, em Portugal estamos a sair da fase Brejnev. As cortinas, sr. primeiro-ministro, foram abertas. E a sua entrevista foi uma das mãozinhas que as puxou. Os passageiros agradecem. O maquinista, por agora, está de quarentena.