(Este texto nasce da adaptação da minha intervenção na sessão de lançamento do meu novo livro “O Governador” na Fundação Calouste Gulbenkian, no passado dia 15 de novembro de 2022)

1 A visibilidade que este livro, “O Governador”, tem tido nos últimos dias tem uma explicação muito simples. Uma explicação que vai além do claro interesse jornalístico das revelações já conhecidas através de diferentes media. E essa explicação está diretamente ligada a uma palavra: SEGREDO.

Vivemos uma política de segredo em Portugal que vai muito além dos segredos formais que estão estabelecidos. É que além do segredo de Estado, do segredo militar, do segredo de Justiça ou de outros segredos definidos pela lei, temos ainda uma política informal de segredo que impede a circulação de informação que caracteriza as sociedades abertas chamadas democracia.

Não sei se é uma herança da nossa cultura judaico-cristã ou se a causa reside numa marca que persiste dos 48 anos de Ditadura.

Sei apenas que persiste uma espécie de ortodoxia que impede a livre circulação de informação com argumentos absurdos.

Como por exemplo:

  • a ideia de que factos com óbvio interesse público devem ser escondidos da opinião pública;
  • ou a ideia, muito salazarista, de que os cidadãos não podem ser informados de determinados factos porque não estão preparados para os assimilar.

Obviamente que no fim do dia, a causa de tudo isto tem uma explicação simples: quem quer esconder informação, apenas quer impedir o escrutínio público para melhor conservar o seu poder.

2 “O Governador” enquanto obra pretende precisamente quebrar a política de segredo que impera em Portugal. Uma política de segredo que  transforma conversas entre titulares de altos cargos políticos sobre a gestão da coisa pública numa conversa privada — como se as mesmas versassem sobre matérias da vida íntima e privada dos protagonistas políticos.

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Lamento mas uma conversa entre um Presidente da República e um primeiro-ministro, entre um ministro e o secretário de Estado ou entre um primeiro-ministro e governador do Banco de Portugal só pode ser pública, por definição. E tem de ser conhecida dos cidadãos portugueses.

Não pode ser escondida no segredo daqueles que pensam que os cidadãos não têm capacidade de assimilar a informação que tem a ver com a gestão do Estado. A restrinção na circulação de informação não é algo que possa acontecer numa sociedade aberta.

Como Popper dizia, a democracia é o sistema político que disponibiliza a todos os cidadãos meios democráticos ou pacíficos de controle dos poderes públicos.

E nesse sistema de controle, nesse sistema de freios e contra-freios que gera o equilíbrio entre o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judicial, o jornalismo tem claramente um papel a desempenhar.

Dependendo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, o jornalismo é ele próprio um garante do equilíbrio entre os diferentes poderes constitucionais.

3 “O Governador” é um livro de memórias, de um testemunho de alguém que viveu por dentro alguns dos principais acontecimentos do período 2010/2020. É um livro no qual Carlos Costa transmite a sua visão sobre o que viveu enquanto governador do Banco de Portugal.

Mas também é um livro de investigação dos principais dossiês dos dois mandatos do governador Carlos Costa.

E também é um livro de escrutínio do poder político liderado por António Costa e do supervisor atual, cuja liderança está a cargo de Mário Centeno, ex-ministro das Finanças de Costa.

Este não é um livro que queira transmitir uma verdade absoluta sobre o período de 2010-2020. É um livro que transmite uma visão fundamentada e objetiva e submete-se ao escrutínio e ao contraditório de outras figuras daquele período.

Este não é um livro de nenhum advogado de defesa de Carlos Costa, até porque o ex-governador não necessita de tal.

Este é um livro de um jornalista. De um jornalista que sempre dedicou a sua carreira a três áreas: a política, a economia e a justiça.

4 Há quem me conheça pelo meu trabalho na minha área judicial e pela investigação jornalística mas sempre fiz muito mais do que isso. Escrevi este livro para tentar quebrar, de uma vez por todas, com esta política de segredo que rege a nossa vida pública.

Acredito convictamente desde há muitos anos que não há razão nenhuma para não termos práticas de prestação de contas e de transparência perfeitamente normais noutros países

Basta olhar para o nosso país vizinho, para Espanha para percebermos que ex-primeiros-ministros como Filipe Gonzaléz, José Maria Aznar e  Mariano Rajoy — três dos quatro últimos líderes governamentais espanhóis antes do atual — fizeram os seus livros de memórias.

Praticamente todos os líderes norte-americanos ou ingleses (Ronald Reagan, Jimmy Carter, George Bush, Bill Clinton, Barack Obama, Margaret Thatcher, David Cameron, Tony Blair e tantos outros). Todos eles fizeram a sua prestação de contas e deixaram a sua verdade.

O congénere espanhol de Carlos Costa, Miguel Fernandéz Ordoñez, governador do Banco de Espanha entre 2006 e 2012, escreveu um livro sobre a crise das dívidas soberanas — que viveu por dentro.

Nos Estados Unidos, os governadores do banco central também têm essa tradição de deixar impresso o seu testemunho que fica para a história. Alan Greenspan e Ben Bernanke são apenas dois outros exemplo.

E podia dar muitos outros exemplos em França, Itália ou Alemanha.

A pergunta que faço é a seguinte: será que Portugal é assim tão diferente?

Portugal é uma democracia consolidada, uma democracia em que os sistema de freios e contra-freios pode ainda ser melhorado, mas que estão consolidados. Será que não passou já o tempo suficiente para deixarmos os fantasmas da ditadura?

5 Acredito convictamente que a democracia e o capitalismo são os sistemas políticos e económicos que mais liberdade e progresso podem trazer aos respetivos países. Como acredito que não há partidos donos da democracia.

Como acredito que os titulares de cargos políticos ou públicos não podem pensar que a comunicação social só deve escrutinar uns, em detrimento dos outros. Como muitos colegas meus, defendo um escrutínio igual para todos e tento praticar essa ideia diariamente.

Mas mais do que o escrutínio, preocupa-me muito um determinado ambiente que estamos a viver em Portugal — e da qual as ausências que se verificaram na sessão de lançamento do meu livro (por opção dos respetivos convidados) são um bom exemplo.

Sempre defendi o pluralismo democrático. Mais do que um jornalista, sou um democrata. E nesta sala estão pessoas de esquerda, do centro e de direita.

Preocupa-me que no nosso país possa existir um ambiente em que os cidadãos entendam que a auto-censura é a solução para não exprimir uma opinião, para não defender uma determinada posição ou até para não estar presente na apresentação de um simples livro.

Houve um tempo em que vivemos uma asfixia democrática de uma pessoa, José Sócrates, que tudo quis controlar.

Durante a apresentação do meu primeiro livro, que ocorreu há cinco anos também por esta altura, disse que esperava que não voltássemos a esses tempo. Hoje digo que espero que não estejamos a viver um tempo em que o medo de desagradar ao chefe possa levar a uma promoção ativa de auto-censura.

Em democracia não há donos da verdade — esta é uma ideia pela qual temos todos de lutar.

PS – Uma parte da estratégia do Governo e do PS de António Costa para tentar atenuar o impacto do conteúdo do meu livro passou por impor uma narrativa falsa de que a sessão de apresentação foi uma espécie de ‘congresso da direita’. 

O que pergunto aos leitores é simples: Ramalho Eanes é de direita? Rui Vilar é de direita? Isabel Alçada é de direita? Teixeira dos Santos é de direita? António Barreto é de direita? Joana Marques Vidal é de direita? Maria José Morgado é de direita?  Todas estas personalidades, e outras que pertencem ao espaço do centro-esquerda ou simplesmente são independentes, estiveram presentes. Daí a falsidade da narrativa.

É importante dizer que propus à editora uma sessão institucional, para a qual deveriam ser convidados o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro António Costa, o ministro das Finanças Fernando Medina e o governador Mário Centeno — titulares em exercício de funções de cargos políticos e públicos relacionados com a temática do livro. Como também convidamos os presidentes da República Cavaco Silva e Ramalho Eanes, o ex-primeiros-ministros Passos Coelho e José Sócrates e a maior parte dos ex-ministros das Finanças com quem Carlos Costa trabalhou, bem como outros membros dos governos Sócrates e Passos Coelho.

Enquanto autor, convidei igualmente outros membros do Governo e um número muito significativo de deputados, dirigentes e militantes do PS, tendo convidado igualmente Francisco Assis para ser o co-apresentador do livro na sessão de lançamento. Assis e muitos outros socialistas aceitaram o convite.

Por exemplo, Francisco Assis aceitou o convite à primeira para apresentar o livro e manteve o seu “sim” após a leitura do mesmo. Contudo, acabou por desistir no mesmo dia em que António Costa anunciou que irá processar Carlos Costa. A partir do momento em que o “Público” noticiou que Assis já não iria apresentar o livro, a 24 horas da apresentação seguiu-se um corropio de mensagens de socialistas a cancelarem a presença na sessão de lançamento. Tudo para tentarem criar a realidade paralela do ‘congresso da direita’.

É preocupante a necessidade que o PS tem de criar realidades virtuais após uns breves mas tumultuosos oito meses de governação em maioria absoluta. Confesso, contudo, que fico muito mais preocupado enquanto jornalista e cidadão para a quase total ausência de tolerância política demonstrada pelo PS, justificada com o receio instalado e generalizado de não desagradar ao chefe António Costa. Como me dizia um conhecido socialista, no dia em que for preciso coragem para ir à apresentação de um livro é porque já perdemos e só resta emigrar.

Eu não penso em emigrar e também não aceito derrotas quando está em causa a democracia e a luta contra o autoritarismo primário. Não aceitei com José Sócrates e não aceitarei com António Costa.