O PS é um pouco como a Christine que está no centro do triângulo amoroso do famoso romance O Fantasma da Ópera. O que nunca sabemos verdadeiramente é se a horrível direita com quem acaba sempre por negociar é o seu verdadeiro amor (o gentil Visconde Raoul de Chagny) ou a sua lúbrica tentação (o fantasma propriamente dito, o triste e manipulador Erik). Ou se, em alternativa, os papéis não acabam sempre trocados, pelo menos na cabeça de muitos socialistas, quando olham, sonhadores, quase enamorados, sempre melancólicos, para a sua esquerda.
Vivemos, de novo, um desses momentos de angústia existencial. Sendo que essa angústia parece dilacerar tanto as fileiras de António José Seguro como as de António Costa. No passado sábado foi Alberto Martins, actual líder parlamentar e apoiante de Seguro que, numa entrevista ao jornal I, proclamou que, se o PS não tiver maioria absoluta nas próximas eleições, deve estar disponível para formar governo coligando-se com os outros partidos de esquerda. Passados uns dias, na sessão de apresentação do seu programa de candidatura, apareceu o próprio António Costa a prometer um diálogo alargado para um Governo à esquerda. Foi mesmo bastante concreto: “O país precisa de um dia conseguir vencer os tabus e conseguir fazer um diálogo alargado à esquerda, que seja construtivo, que não sirva só para fazer oposição aos governos de direita. Nunca fechei a porta e nunca fecharei essa porta”.
O PS está em campanha interna e por isso é natural que regresse aos seus mitos, sendo que não há mito mais teimoso na esquerda do que o mito da unidade dessa mesma esquerda. Só não é tão antigo como o mito de Ícaro porque se o sonho do homem-voador é quase tão antigo como a Civilização, a ideia de que é possível a unidade da esquerda vem apenas desde os dias tumultuosos da Revolução Francesa, quando as esquerdas mal tinham acabado de nascer e já se estavam a matar umas às outras.
Dir-se-á que a História é a História e que já lá vai, mas a natureza da esquerda também é isso mesmo, a natureza da esquerda, e nos seus genes está inscrita a dissensão eterna. Tão eterna é que compete com o sonho de nos nascerem asas nos braços, de nos transformarmos, qual ícaros sobre-humanos, em Homo volens. Mas não vou por aí, fico-me apenas pelo mito de que tudo seria mais fácil se, em Portugal, nos esquecêssemos dos traumas fundadores da nossa democracia.
Reza esse mito que é tempo de colocarmos uma pedra de esquecimento sobre a luta titânica entre Mário Soares e Álvaro Cunhal nos idos de 1974 e 1975, abrindo espaço para um tempo de reconciliação e colaboração, um tempo em que Seguro, ou Costa, passariam a dar o braço a Jerónimo e a Semedo, ou a Catarina, não apenas para descer a Avenida, mas também para subir as escadarias de São Bento.
É uma narrativa bonita, daquelas que dá para fazer suspirar os sonhadores, mas que choca não com o passado, mas com o presente. O problema da esquerda portuguesa é que o conceito de esquerda é dos mais inúteis para, em Portugal e neste momento, descrever as alternativas que se colocam ao país. Alternativas de governo, não alternativas de retórica. O PS dá-se bem com o resto da esquerda quando está na oposição porque isso faz parte da sua natureza como oposição, não da sua natureza como partido de esquerda.
De facto, o que é que une o PS ao PCP ou mesmo ao Bloco? As agendas fracturantes? É curto e é frágil. O SNS? A escola pública? Não: por vontade do PCP e do Bloco tudo seria imaculadamente estatal, e não é esse o modelo nem do SNS, nem dos princípios constitucionais relativos à Educação. As outras políticas sociais? O PS realista fica de cabelos em pé só de se recordar de como, sempre que foi governo, teve de enfrentar a CGTP, mais os Mário Nogueiras e os Carvalhos da Silva deste mundo e do outro, para não falar dos Boaventuras e discípulos.
O PCP que temos, o nosso PCP, é o partido neoestalinista de sempre, o partido contra a moeda única, o partido com dúvidas sobre a Coreia do Norte, o partido onde toda a dissidência é punida, o partido que orgulhosamente se assume marxista-leninista. Será que no PS já se esqueceram do que isto tudo significa?
O Bloco parece diferente mas não é. Na essência não é. Não gosta da Coreia do Norte, é verdade, tem mais dúvidas sobre o euro, escondeu o trostkismo e o maoismo originais na gaveta, mas continua a comportar-se com o mesmo sectarismo de sempre, com o mesmo ódio secular a qualquer realismo de governo, com a mesma intransigência para todos os “compagnons de route” que, aqui e ali, quiseram aproximar-se do PS, negociar com o PS.
Há uma linha – julgo eu que ela não desapareceu nem desaparecerá – entre o PS e esta esquerda que continua a ser iliberal, revolucionária, adversária da economia de mercado, intransigente e que vive a pureza dos seus princípios como uma glória suprema e insusceptível de partilha.
Todas as conversas que por aí andam sobre a “unidade da esquerda”, sobre o “diálogo à esquerda”, sobre o “governo de esquerda”, ignoram sempre esta realidade. Esquecem sempre que cada esquerda acha que ela é que é “verdadeiramente” de esquerda. É, como disse atrás, da sua natureza.
O país não uma espécie de reprodução em grande da câmara de Lisboa, com meia dúzia de independentes ali à mão (Helena Roseta e Sá Fernandes), muito úteis para compor o ramalhete. No país estão o PCP e o Bloco. E o PS eternamente dilacerado e eternamente incapaz de perceber que não se combate a influência da esquerda radical radicalizando o discurso da esquerda morada – é exactamente o contrário que acontece, como estes anos mostram, como a experiência de Hollande também mostra.
O PS que sonha aliar-se à esquerda é o que acredita que aí está o seu grande amor, o seu Visconde de Chagny, quando o PS de que necessitamos é um que seja capaz de reconhecer que essa outra esquerda é realmente Erik, o fantasma a quer arrastar para as catacumbas da Ópera, o fantasma a que, como Christine, não pode deixar senão o seu anel e só no dia do seu enterro. Para salvar os dedos. E, de caminho, salvar também a governabilidade do país.
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