1. Recorda-se do simpático juiz Neto de Moura? Pois bem, a encantadora pessoa que encontrava todas as desculpas para a violência doméstica sobre mulheres – afinal eram mulheres pobres, a quem interessam esses seres abandonados pelos deuses? –, a ponto de insultar as vítimas e descrever os agressores quase como modelos para toda a sociedade, foi há pouco tempo premiado pelos seus pares da Relação.
O agradável juiz considera-se de uma casta acima daqueles que lhe apareciam nos casos que tinha de sentenciar. Uma mulher pobre de Felgueiras apanha de dois homens com uma moca com pregos? Bem feito, para não andar a dormir por aí. Outra mulher pobre leva murros com o filho bebé ao colo? Que mariquinhas, a queixar-se de umas meras nódoas negras pouco graves. A integridade física – e a dignidade, e o respeito, e a saúde física e mental – de umas quaisquer mulheres não interessam grandemente. Mas, ah, o bom nome e o respeitinho devido ao juiz Neto de Moura é assunto de outro calibre. Uns policiazecos que param o dito juiz a circular num carro sem matrícula e que não lhe são subservientes e bajuladores? Que tratam o juiz – suprema injúria – como tratariam qualquer outro cidadão? Que não aceitam a má vontade e a falta de obediência de tão alta sumidade? Bom, aqui, sim, há valores importantes a proteger.
Para Neto de Moura a vida de mulheres agredidas não conta, mas claro que pediu indemnizações de vários milhares de euros porque os polícias que encontrou não lhe afagaram o ego. Crime muito grave, portanto. Neto de Moura faz parte de uma casta superior. O seu ego vale mais que a saúde de umas quaisquer mulheres.
Convém lembrar que Neto de Moura não está sozinho nesta empreitada. Aparentemente o processo disciplinar que lhe havia sido instaurado pelo CSM foi apenas para fazerem figura de bonzinhos quando as pessoas decentes estavam em choque com as sentenças de Neto de Moura. E os juízes da Relação que agora decidiram em seu favor são seus cúmplices na criação informal de regras que ditam que aos juízes não se aplicam exatamente as mesmas leis que aos meros mortais não jurídicos.
Claro que isto não é um problema ‘dos juízes’. Há muitos juízes decentes e mortificados por terem um colega da estirpe de Neto de Moura e dos que o protegem. Mas há um problema. Que se resume na frase clássica e simples de Lord Acton: o poder corrompe. Os juízes têm um enorme poder sem grande escrutínio (exceto a consciência de cada um). Os pares tendem a proteger-se – em qualquer profissão. O CSM é manifestamente insuficiente. Só agora a comunicação social começa a vigiar o que se passa nos tribunais, superiores e de primeira instância. O poder político tem medo de se envolver nestes assuntos – sobretudo com o estrépito dos casos com políticos que correm.
E, no entanto, o problema é político – digo outra vez. Cabe ao poder político assegurar que o poder judicial não atua à revelia dos valores por que a maioria da comunidade se rege e que deve estar plasmada nas leis. Porque estes valores dizem-nos que a proteção do ego e da autoimagem de um juiz não vale mais que o direito de uma mulher não ser submetida a crimes de honra.
2. Continuando nas indigestões. Em Coimbra uma atleta universitária finlandesa foi, diz, vítima de uma tentativa de violação, parada por outros atletas (os seguranças aparentemente fizeram ouvidos moucos), nos Jogos Europeus Universitários em Coimbra. Tal resultou num comunicado violento da organização finlandesa de desporto universitário, descrevendo a displicência com que o caso foi tratado: as raparigas finlandesas bebiam, as testemunhas são irrelevantes, apenas contam provas físicas. Não se revela a nacionalidade do agressor e as críticas vão sobretudo para a organização dos jogos, não para Coimbra.
Mas o presidente da câmara de Coimbra, Manuel Machado, resolveu dar-nos a sua visão do mundo. Por meio de insinuações pouco subtis, informou que esta queixa fora nada mais que uma vingança por Coimbra ter ganho à Finlândia a organização dos jogos.
O que sucedeu ou não será investigado, dentro do possível, pelas devidas instâncias portuguesas. Mas a cabeça perdida de Manuel Machado é que não se aceita. Não se aceita o ataque a outro país. E, sobretudo, não se aceita que se despreze desta forma uma queixa sobre um crime grave que poderá ter ocorrido na sua cidade. Algo que o devia – para bem da segurança das mulheres em Coimbra – preocupar e ocupar.
Não vale a pena fingirmos que abusos sexuais têm sido até agora inexistentes no desporto de competição. Tivemos o recente caso das numerosas ginastas olímpicas americanas abusadas pelo mesmo treinador. A nadadora olímpica Ariana Kukors revelou ter sido abusada pelo treinador. Diana Nyad, já sexagenária, tem também uma história de abuso. É inadmissível que um político eleito em 2018 ignore o mundo em que vive e insista manter valores que ilibam à partida agressores sexuais como se estivéssemos em 1890.
Felizmente Manuel Machado não está isento de escrutínio. O PSD e o CDS de Coimbra já criticaram as insinuações do presidente da câmara de Coimbra. Os eleitores deviam fazer o mesmo. O regionalismo não se pode sobrepor à decência. Ah, e os arautos dos direitos das mulheres que gritariam em convulsões sucessivas se tivesse sido alguém do PSD ou do CDS a proferir estas tiradas – estão a banhos, certo?