Janeiro não foi só o mês onde vimos desaparecer da Assembleia da República um dos partidos fundadores da democracia em Portugal (esperemos que temporariamente), mas também o mês da morte de uma filósofa belgo-americana largamente desconhecida entre nós: Alice von Hildebrand (1923-2022). Este texto é sobre ela, mas uma referência ao homem com quem se casou e de quem viria a adoptar o nome é incontornável. Falamos, obviamente, de Dietrich von Hildebrand (1889-1977), a quem Pio XII se referiu como o próximo Doutor da Igreja.

É costume dizer-se que por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher, mas neste caso foi o contrário, e Alice von Hildebrand era a primeira a admitir, como aliás bem demonstra o Hildebrand Project, uma iniciativa que ajudou a fundar e que tem permitido manter vivo o pensamento e obra de Dietrich von Hildebrand. Pela diferença de idades vemos logo que foi um encontro invulgar — tinha ela 36 e ele 70 quando se casaram. Duvido que haja muitos casos destes nos livros de genealogias.

Dietrich e Alice von Hildebrand

Se tivéssemos perguntado a Alice von Hildebrand (doravante simplesmente von Hildebrand) quais os momentos mais marcantes da sua vida, para além, naturalmente, do casamento já referido, provavelmente iríamos ter como resposta os 37 anos que passou como professora no Hunter College, em Nova Iorque, um dos meios mais hostis a quem, como ela, se assumia como católica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando levada a sério, a fé implica, por um lado, o reconhecimento de uma Verdade transcendente, objectiva e imutável (numa época em que cada um considera a sua opinião como a última palavra, esta ideia soa algo estranha) e, por outro, o testemunho daquilo em que se acredita (é por isso que não faz qualquer sentido reduzir a fé à vida privada). Claro que numa instituição secular não se está à espera de se ouvir falar na sala de aula de dogmas ou da fé, mas também ninguém disse que essa tenha sido a abordagem de von Hildebrand. Como professora de filosofia, usava os métodos ao dispor da filosofia, a começar pelo correcto uso da razão. Aliás, tudo começa aqui ou não fosse o fim último da razão o conhecimento da verdade, seja esta a do mundo natural ou referente ao plano metafísico. Se esta abordagem levava depois os alunos a questionarem-se e a porem em causa os seus pressupostos, isso já era fruto da reflexão de cada um.

Na sua autobiografia, Memoirs of a Happy Failure (Saint Benedict Press, 2014), von Hildebrand conta que cerca de 90% dos alunos chegavam às suas aulas a dizer que a ciência dá conhecimento e que a filosofia dá opinião. No entanto, não foram poucos os que mudaram radicalmente de perspectiva depois de a terem como professora (ou mentora, dentro ou fora da instituição). Destes, uns quantos converteram-se ao catolicismo (foi o caso da filósofa Ronda Chervin), chegando à conclusão que não há qualquer incompatibilidade entre fé e razão. Ganhavam assim uma mundividência e entendimento das coisas que só uma razão iluminada pela fé traz. “Acredita para que possas entender” (crede ut intellegas), escreveu Santo Agostinho.

Lily (assim era conhecida entre os amigos) teve a docilidade e tenacidade própria dos santos. Amava os seus alunos, mas nunca capitulou em relação às questões essenciais. Por essa razão, os seus pares e a própria Direção do Hunter College, vergados à moda secularista, fizeram a sua vida um inferno. Durante anos auferiu o salário mais baixo do seu escalão, as suas aulas eram sempre as últimas do horário, recebeu a cátedra a muito custo (do júri do concurso, oito votaram contra e nove a favor) e era constantemente acusada de estar a pregar dogmas católicos na sala de aula, mesmo quando se limitava a ensinar, entre outros, Platão e Aristóteles, que ninguém duvida serem anteriores a Cristo. Se estes filósofos tinham como preocupação central o conhecimento da verdade, isso já não era culpa sua.

De tão materialista que se tornou, a mente moderna tem sérias dificuldades em aceitar a ideia de transcendência ou de uma Verdade que é objectiva e imutável. O perigo é que, sem esta, julgamentos como o de Nuremberga nunca teriam sido possíveis pois não haveria uma referência para julgar quem está convencido que a sua verdade (neste caso, supremacia da raça ariana, que levou ao que levou) é que é a verdadeira.

O homem receia a Verdade porque sabe que poderá ter que mudar de vida se a vier a reconhecer. Tal processo é normalmente doloroso, mas é também libertador, como atesta o testemunho de muitos. O próprio Dietrich von Hildebrand, referindo-se à sua conversão, dizia que a grande revolução na sua vida foi quando descobriu que havia uma autoridade acima dele; até então, ele era a autoridade.

Num certo sentido, o ódio à transcendência pode simplesmente resultar de uma distorção do Bem e do Belo, e não raras vezes são os intelectuais que têm culpa no cartório. Como dizia Chesterton, “os piores criminosos não são assassinos e ladrões; os piores criminosos são os intelectuais, que dão a comida errada às crianças e as pervertem.” Muitas destas crianças foram provavelmente parar às mãos de Alice von Hildebrand. A sua missão foi só uma: corrigir a distorção e devolver a liberdade à alma e ao intelecto. Este foi o seu legado. Quem sabe o Hildebrand Project não se estenda também a ela.