A 8 de Novembro de 2016, depois de um concerto de Andrew Bird no Porto, fui para casa acompanhar as “presidenciais” americanas. Não estava excessivamente interessado. Por um lado, toda a gente esperava a vitória da senhora Clinton. Por outro, toda a gente queria que a senhora Clinton vencesse. Eu próprio, Deus me perdoe, desejava, embora com intensidade mínima, que a senhora Clinton vencesse. Não recordo porquê. Recordo que, ao longo da noite, e à medida que o triunfo de Trump passou de impossível a provável e de provável a garantido, a estranheza da situação assustou-me um bocadinho. E a desorientação dos jornalistas e comentadores que desfilavam nas televisões deles e nas nossas divertiu-me muito. A partir de certa altura, a diversão impôs-se ao susto.

De manhã cedo, quase sem dormir, conduzi bem-disposto rumo a um hotel da Foz, para tomar o pequeno-almoço com um amigo de Boston que costuma visitar Portugal a negócios. No percurso, negociei comigo se devia gozar com o Joshua ou compreender-lhe o pesar. Felizmente, o Joshua, eleitor de Sanders e alérgico a Hillary, mostrava-se pouco apreensivo. No televisor pendurado acima da mesa dos ovos mexidos e do bacon, vimos um resumo do discurso de Trump. Concordámos em que foi um discurso sensato, distante das anteriores intervenções do homem. E da maioria das seguintes.

Durante quatro anos na Casa Branca, Trump continuou a ser o habitual egocêntrico de vocabulário limitado, que profere disparates e escreve em maiúsculas. Não foi um mau presidente. Ao contrário das previsões, não destruiu a América nem iniciou a III Guerra Mundial. Não aboliu a democracia nem asfixiou a liberdade. E os pretextos para expor com franqueza as debilidades da Europa são culpa da Europa, não de Trump. Sobretudo Trump teve, e tem, um extraordinário talento para irritar criaturas que dá gosto ver irritadas. E “irritar” é favor: dentro e fora dos EUA, o “Trump Derangement Syndrome”, aliás sucessor reforçado do “Bush Derangement Syndrome”, do velho “Republican Derangement Syndrome” e, reconheça-se, do ancestral “America Derangement Syndrome”, veio para ficar.

Trata-se da incapacidade de avaliar as acções do homem pelo valor intrínseco, substituindo qualquer esforço de racionalidade por uma histeria próxima, e às vezes indistinguível, de uma crise epiléptica. A maleita, cujos sinais surgiram em 2015, consagrou-se com sintomas agravados nas multidões que, aos guinchos, “recusaram” os resultados eleitorais, e prossegue sem parança até hoje. Os “talk-shows” locais empregam “comediantes” (força de expressão) que há oito anos não produzem uma “piada” (digamos) cujo sujeito não seja Trump. Foram aqueles que, junto com inúmeros especialistas (tosse), juravam em 2016 que Trump – “gravem as minhas palavras” – não ganharia as eleições. O YouTube gravou as palavras deles, em vídeos que são um mimo e uma oportunidade única de acharmos graça a Stephen Colbert, John Oliver, Jimmy Kimmel, “celebridades” sortidas de Hollywood ou os “pivôs” e “politólogos” da CNN e afins. É lindo assistir à arrogância a escangalhar-se.

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Convém notar que boa parte do sucesso político de Trump não se deve a Trump, e sim à presunção totalitária do “sistema” que se lhe opõe. Nas cabecinhas que falam pelo “sistema” não entra a hipótese de existir vida exterior, fora dos clichés e das crenças que unem as cabecinhas num literal lugar-comum. E se essa vida existe, não é respeitável nem respeitada. No fundo, não é vida. São os “amargos” e “frustrados” de que falava Obama. Ou os “deploráveis” de Hillary. Ou o “lixo” com que Biden os despachou agora. A “inclusão” é muito bonita mas não inclui “lixo”. Principalmente, o “lixo”, ou os habitantes das berças que os holofotes só iluminam para efeitos de chacota, não pode – não pode, ouviram? – decidir o futuro da mais poderosa e próspera das nações. Em 2016, o “lixo” decidiu. Em 2020, decidiu a Covid. Em 2024, não se sabe.

Eu não sei e, desta vez, o “sistema” também não sabe. E não finge saber. Desta vez, à cautela, o “sistema” limita-se a proclamar que Trump é a reencarnação de Hitler e que a vitória dele abrirá as portas ao Apocalipse, admissão de que a vitória é plausível. Desta vez, alguns dos “media” representativos do “sistema” vão ao ponto de não apoiarem formalmente qualquer dos candidatos, embora andem há três meses a vender uma nulidade como candidata de gabarito. Desta vez, o “sistema” que eleva o medo a programa e bandeira, parece ter medo. Medricas, pois.

Por sorte, resta o “Público”. Um destes dias, o director do “Público” enviou uma carta aos leitores. E um leitor enviou-me a carta a mim. Eis o início do primeiro parágrafo: “Por muito que os europeus desejem, não, não vão poder votar nas eleições norte-americanas de 5 de Novembro” (pelos vistos os consumidores do jornal estavam convencidos do contrário, e teve de vir o director desiludi-los). Eis o início do segundo parágrafo: “É real a possibilidade de ver eleito um criminoso condenado” (já vimos: aliás, o “Público” é o diário que, a 31 de Outubro de 2022, fez uma manchete a dizer que o “Brasil escolheu a democracia e voltou a eleger Lula”). O segundo parágrafo prossegue com a enumeração dos cataclismos que Trump provocará, caso eleito (e zero referências às misérias que a administração em vigor já provocou). Os demais parágrafos inventariam a equipa do “Público” que assegura “uma cobertura completa, variada, com profundidade” das eleições.

Não sendo o melhor remédio, é um óptimo placebo. O destrambelhamento mental que Trump suscita é um universal e inevitável motivo de risota. Quem ri sem motivo é Kamala, pelo menos até terça-feira.