Eu sei perfeitamente que, por estes dias, é o PS quem mais nos tem maravilhado, de António Costa a Miguel Alves, passando pela contratação por Mariana Vieira da Silva de um jovem indiscutivelmente promissor para adjunto do seu gabinete. Entre várias outras coisas que eu perdi a paciência de contar. Mas acabei por me interessar mais pela Conferência Nacional do PCP. Não que sofra de um qualquer fascínio pelo PC: nem positivo nem negativo. Um assunto inútil? Bater no ceguinho, ou, como dizem os ingleses, açoitar cavalos mortos? Não creio. O PC está bem vivo. Para quem tiver visto, na televisão, a cobertura da Conferência, vivo de uma estranha vida.
Ouvi, e depois li, a intervenção de Jerónimo de Sousa e a de Paulo Raimundo, o novo secretário-geral. Houve certamente diferenças de estilo e o discurso de Paulo Raimundo foi, sem dúvida, muito mais curto, um benefício indiscutível para quem teve de os ler. Mas, sob muitos aspectos, eram indistinguíveis um do outro. No PC fala-se uma linguagem que pouco tem a ver com a linguagem comum. É uma linguagem feita de abstracções a que a seita confere significados particulares. Tanto em Jerónimo como em Paulo Raimundo, o “colectivo” está obsessivamente presente, explícita ou implicitamente (“Um Partido onde todos se constituem num só”, diz Paulo Raimundo). Depois, há aquela estranha mania do adjectivo “amplo”, que vem de Cunhal (“as mais amplas liberdades”): “amplo debate”, “amplo trabalho”, “ampla iniciativa”, “amplo colectivo”, “amplas camadas e sectores”…. Será um tique verbal de Cunhal, servilmente copiado, ou terá uma história própria para ser contada? “Fascizante” também ocorre regularmente, embora seja muito menos misterioso, é claro, do que o hábito do “amplo”. De “alternativa patriótica e de esquerda” nem é preciso falar. “Massas”, “luta” (muita “luta”), “capital”, “classes” são, obviamente, recorrentes num e noutro. Entidades maciças que absorvem em si toda a realidade.
O uso destas expressões faz parte da “identidade comunista”, que Jerónimo e Paulo Raimundo também apreciam salientar. A identidade comunista define-se, em parte, pelo modo como estas palavras se repetem vezes sem conta, combinando-se num número limitado de formas. Paulo Raimundo levanta por vezes num limitado voo lírico, como quando, por exemplo, diz que “o socialismo e o comunismo, a sociedade nova, a que o futuro pertence” são “o mais belo projecto que a humanidade conhece”. Mas isso, é claro, em nada o impede de percorrer todas as áridas etapas daquela linguagem abstracta que era já a de Jerónimo, e com extraordinária facilidade. Se “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, como dizia um filósofo, aquele mundo não é, sem dúvida, peço desculpa, excessivamente amplo.
Nem podia ser. A dialéctica comunista exige a exiguidade vocabular, porque esta é a condição necessária para que o processo alquímico da substituição do sentido das palavras se opere. É preciso limitarmo-nos a uma linguagem uniforme e repetitiva, constituída apenas por abstracções, a célebre linguagem de pau, para que se possa dizer que se é a favor da “paz” – como Jerónimo e Paulo Raimundo abundantemente disseram, a propósito da invasão russa da Ucrânia –, quando na verdade se quer exprimir o desejo da vitória da Rússia e a derrota dos ucranianos, bem como dos E.U.A., da NATO e da União Europeia. Uma linguagem mais rica e menos abstracta obviamente obrigaria a que se saltasse do plano do abstracto para o da experiência humana. Esse passo, um comunista não pode, na linguagem, dá-lo. O argumentário, ao mais leve toque da realidade, esboroar-se-ia.
O mesmo, de resto, vale para o bem conhecido “centralismo democrático”, que Jerónimo de Sousa elogiou na sua intervenção e que permitiu a escolha de Paulo Raimundo para secretário-geral. A líder parlamentar do PC, Paula Santos, em entrevista à Rádio Observador, garantiu-nos, sem verdadeiramente explicar as razões da sua afirmação, que o PC é “profundamente democrático” e que a “auscultação” das bases do partido foi imensa. Mais uma vez: numa linguagem mais rica e mais próxima da experiência humana tal afirmação não resistiria ao confronto com a realidade. Mas, para que isso tivesse lugar, seria necessário que o PC saísse da espécie de solipsismo colectivo em que vive mergulhado. O mais amplo solipsismo colectivo, se se quiser. Aquele “onde todos se constituem num só”.
Ignoro se alguma coisa mudará no PC com Paulo Raimundo e por causa dele. A linguagem certamente não mudará, e sem tal mudança é duvidoso que alguma outra coisa mude. Ela define a tal “identidade comunista”, a identidade que exprime o “colectivo”. Miguel Tiago, o antigo deputado comunista, contou ao Observador uma história entre todas reveladora. Ainda jovem, declarou, numa reunião onde se encontrava Paulo Raimundo, que não percebia porque é que o partido não apoiava a legalização das drogas leves. No final da reunião, Paulo Raimundo dirigiu-se a ele e disse-lhe, de modo a que todos os outros ouvissem, que as pessoas que Manuel Tiago conhecia e utilizavam essas drogas tinham vidas estruturadas, o que não acontecia com os jovens do interior do país. Palavras que causaram forte e duradoura impressão em Miguel Tiago: “Nunca mais fui capaz de pensar em nada, do aborto às drogas, colocando-me a mim no centro. Percebi que a justeza não pode ser avaliada pela nossa experiência pessoal”.
Quando li isto, também eu percebi alguma coisa: porque é que Paulo Raimundo foi eleito pelo centralismo democrático. Quem melhor do que alguém que tão duradouramente convence um jovem a não ter em conta a sua experiência pessoal para dirigir um partido “onde todos se constituem num só”? Como disse no princípio, não tenho qualquer fascínio, positivo ou negativo, pelo PC. Acho-o apenas um partido totalitário – com pleno direito a existir. “Há quem salive e desespere pelo fim do PCP”, disse Paulo Raimundo. Pessoalmente, não salivo nem desespero. Mas lá que faz horror, isso faz.