Não se deve nunca subestimar a admiração que o poder bruto suscita num vasto número de pessoas. Ela pode manifestar-se com o auxílio de uma máscara ideológica ou de uma forma nua, despida de quaisquer vestes, como um impulso cego, por uma necessidade psíquica inconsciente, contando apenas com o auxílio de um arremedo de teorias conspiratórias que ajudam a mantê-la viva. Esse tipo de admiração recebe redobrada força se esse poder bruto se apresentar como o opositor de um outro poder que é objecto de uma detestação antiga e duradoura pela liberdade de que goza e pela riqueza que possui.

A Rússia de Putin suscita indubitavelmente esse género de admiração, e esta é reforçada pelo facto de ela ter aos olhos dos seus admiradores o estatuto de grande inimiga dos Estados Unidos. Acontecia já assim no tempo da defunta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – quatro palavras, quatro mentiras, como dizia Cornelius Castoriadis – e a coisa excedia de longe o caso dos comunistas. O poder bruto fortifica uma esperança por muitos partilhada que Rui Ramos optimamente identificou aqui na semana passada: a esperança de que o futuro do mundo não tem que ser democrático. E a Rússia, com a sua tradição ininterrupta de despotismo, com a possível excepção dos poucos meses entre Fevereiro e Outubro de 1917 e os primeiros tempos do desabar da U.R.S.S., é um objecto de adoração ideal, como o é, com a mesma tradição, a China. O nacionalismo da Grande Rússia, dominando a Pequena Rússia e a Rússia Branca (Ucrânia e Bielorrússia, respectivamente) é uma afirmação do puro poder. A U.R.S.S., como o Império dos czares, também era assim. Desde relativamente cedo, a ideologia já não contava, excepto de forma acidental e acessória, ali. O que contava era o poder na sua forma mais brutal, tal como Lenine o teorizou – e esse foi o legado intelectual mais importante do seu particular génio, não a sua “interpretação” do marxismo, puramente instrumental.

Putin, no fundo, não é senão a actualização de um passado que esteve sempre ali. O que aconteceu na Geórgia e na Crimeia foram pequenos passos no exercício do poder brutal. A Ucrânia está a ser um passo maior. Porque, não tenhamos dúvidas, é a Ucrânia no seu todo que Putin ambiciona conquistar. De resto, explicou-o com uma clareza admirável: a Ucrânia não tem direito a existir fora do jugo da Grande Rússia. Na medida em que apresenta justificações para o acto, elas relevam do puro cinismo: simulação de diálogo diplomático, inversão das relações de causa e efeito (invenção de ameaças exteriores, denúncia de massacres supostamente cometidos pelos ucranianos) e por aí adiante. O que a televisão mostrou do que se passou no Kremlin por estes dias merece ser visto como um dos mais acabados produtos do cinismo que o poder brutal se permite. É, verdadeiramente, de gelar a espinha.

Por cá, o PCP repete, fascinado, o argumentário de Putin. É a admiração incontida pelo poder brutal e o tal desejo que o futuro não seja democrático que explica que a Rússia continue para os comunistas a ser “o Sol da Terra”, para falar como Álvaro Cunhal. Não é necessária a intimidade ideológica do passado: basta a atracção irresistível pelo poder brutal daquele sol negro, que foi, desde o princípio, o elo mais forte da relação.

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Para o perceber, basta ler as notas do gabinete de imprensa do PCP relativas à crise na Ucrânia. Está lá tudo. A inversão das relações de causa e efeito: a “escalada de confrontação” é “promovida pelos EUA e a NATO contra a Rússia”, o regime ucraniano, imposto pelos EUA, a NATO e a UE, é “belicista” e provocador, a NATO visa a “subjugação da vontade soberana e dos direitos de países e povos”. E o amor imoderado pela diplomacia e pela paz: “Portugal deve pugnar pela solução pacífica dos conflitos internacionais, pelo desarmamento, pela paz, contribuindo para pôr fim à escalada de confrontação e privilegiar um processo de diálogo com vista a promover a segurança na Europa, no respeito pela Constituição da República Portuguesa, da Carta da ONU e da Acta Final da Conferência de Helsínquia”. Notar-se-á que estes dois movimentos são, na retórica do PCP, complementares: a proclamação do amor da paz visa reforçar a inversão das relações de causa e efeito e essa mesma inversão é feita em nome do amor da paz. É uma velhíssima táctica dos comunistas. Lembrem-se do Conselho Mundial para a Paz e de muitas outras coisas assim.

É preciso notar que este esquema de pensamento, bem como a admiração pelo poder brutal da Rússia, estão longe de ser o exclusivo do PCP. Encontram-se, com uma lógica mais fruste, um pouco por todo o lado, e nem sequer são um exclusivo da esquerda. Há, de facto, paixões que são generalizadas. Tomemos, por exemplo, o último artigo de Miguel Sousa Tavares no “Expresso”. Com a sua característica densidade de convicção, ele retoma o argumentário do PCP de um modo simultaneamente popular e altaneiro, que sugere, com a habilidade possível, uma certa aparência de sofisticação ao raciocínio.

Inversão das relações de causa e efeito: os verdadeiros fautores da guerra, no caso de esta vir a acontecer (voltarei umas linhas abaixo a este importante ponto) são, entre outros, “os vendedores de armas ao Pentágono, à Ucrânia e aos países europeus, os produtores de petróleo e de gás de xisto americano”. Temos assim já uma base sólida de indivíduos desprezíveis. Mas não basta. Biden fez “um verdadeiro discurso de guerra”. Um discurso que é uma espécie de manifesto em prol dos “beneficiários da guerra” e dos “incendiários militantes e imbecis, como Stoltenberg”, o secretário-geral da NATO. Um verdadeiro “imbecil”. Que inveja que eu tenho de Miguel Sousa Tavares! Como gostaria de poder usar assim uma linguagem franca e rude! Até neste momento me apetecia – mas algo me inibe. O melhor é passar já às vítimas dos horríveis indivíduos atrás mencionados, que são simbolizadas por Putin, que faz o que faz “em estado de necessidade, e por razões que são justas, atendíveis e, pelo menos, dignas de serem consideradas” por todos que não sejam incendiários ou imbecis.

Amor pela paz: os “especialistas” que acusam a Rússia de organizar a invasão da Ucrânia – “formatados em cursilhos nos Estados Unidos e doutrinados nos cocktails do 4 de Julho na embaixada americana” – oferecem para defender a sua tese de uma invasão russa argumentos “tão preguiçosos e desequilibrados” que “chegam a ser pungentes”. São eles os verdadeiros inimigos da paz: desejam, “no íntimo”, a guerra. Em contrapartida, “Putin fez divulgar um vídeo dele reunido com o ministro dos Negócios Estrangeiros em que Lavrov lhe dizia que deviam continuar os esforços diplomáticos”. Não quer isso dizer que a Rússia deseja a paz? Os russos mostraram imagens das suas tropas a retirarem da Crimeia e anunciaram que domingo findariam os seus exercícios na Bielorrússia. Querem mais? E não garantiu Putin “pela enésima vez que não ia invadir a Ucrânia e que não queria uma guerra na Europa”? Ah, perdoem que eu me repita, mas como gostaria eu de saber utilizar aquela linguagem franca e desinibida em que Miguel Sousa Tavares é pródigo…

Uma tão subtil caracterização do que está em jogo conduz Miguel Sousa Tavares a uma aposta ousada, mas conforme aos movimentos do seu espírito: “hoje, sexta-feira, apostei que a Rússia não invadiu a Ucrânia. Espero ter ganho a aposta – não apenas até hoje, mas até um futuro tão longínquo quanto possível”. Receio que o curso dos acontecimentos faça com que Sousa Tavares perca a aposta. Mas – permito-me sublinhar – isso não fará dele um “imbecil”, apenas alguém que não percebe nada do que se passa à sua volta, o que certamente terá um outro nome qualquer.

Mas voltemos à Ucrânia propriamente dita. Esperemos que as forças ucranianas e a pressão internacional cheguem para que a Ucrânia se consiga, pelo menos em parte, defender do poder bruto. Se fosse crente, diria: Deus esteja com eles! E, pensando bem, mesmo não sendo crente, digo à mesma: Deus esteja com a Ucrânia!