Ao contrário do que seria de esperar, dado o tema ser a menstruação, a polémica à volta do questionário da DGS não esmoreceu ao fim de 5 dias, já flui há quase um mês. Há gente escandalizada porque o questionário é dirigido a todas as pessoas que menstruam quando, dizem, devia sê-lo a mulheres e pessoas que menstruam.

A DGS considera que as mulheres já estão incluídas nas pessoas que menstruam, mas os indignados acham que lhes estão a retirar protagonismo. Há tempos, as feministas exigiam linguagem inclusiva e até instituíram o todes para abranger todas e todos; agora, são contra a linguagem inclusiva e já condenam o uso de um termo que engloba toda a gente. Afinal em que é que ficamos? Com esta atitude negativa acabam por contribuir para a perpetuação de estereótipos de género. Nomeadamente, o que diz que as mulheres são indecisas e nunca estão satisfeitas com nada, la donna è mobile e tal.

Por uma questão de economia, se “pessoas que menstruam” abrange quer as mulheres, quer as pessoas que, não sendo mulheres, também têm o período, acho desejável que se utilize. E que esta prática se estenda a outros campos. Se bem que, para já, ainda não está a ser aplicada nos sítios onde procurei. Numa consulta rápida à página da Wikipédia dedicada ao “sufrágio feminino”, verifiquei que a entrada começa com “O movimento pelo sufrágio feminino é um movimento social, político e económico de reforma, com o objetivo de estender o sufrágio às mulheres”. Significa que ainda não foi corrigido para substituir “mulheres” pelo mais correcto e inclusivo “pessoas que não podiam votar”. Como sabemos hoje em dia, é falso que as mulheres não pudessem votar, pois havia homens que se identificavam como mulheres e que votavam à vontade. Aliás, toda a narrativa da opressão feminina tem de ser revista e expurgada dos seus erros discriminatórios, uma vez que ao longo da história sempre houve homens que se identificavam como mulheres a oprimir mulheres que se identificavam como homens. O oposto de heteropatriarcado. Há mais exemplos. O direito ao aborto não é uma conquista das mulheres, mas sim de pessoas que engravidam. A disparidade salarial entre sexos não existe, o que existe são pessoas que ganham mais que outras. As quotas de género são um disparate, não faz sentido impor a presença de um tipo específico de pessoas num grupo de pessoas iguais. O desporto feminino é um contrassenso, é tempo de admitir que a separação que se faz não é entre os categorias retrógradas de homens e mulheres, mas sim entre atletas e piores atletas. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas devíamos estugar o passo. Não é obrigatório percorrê-lo ao ritmo das pessoas mais lentas – ia dizer “mulheres”, mas policiei-me a tempo.

Seja como for, em vez de protestarem, as mulheres deviam era agradecer a entrada dos homens no mundo da menstruação. Além de mais visibilidade, os homens trazem uma competitividade masculina que pode ajudar a elevar a menstruação ao próximo patamar. Vamos assistir a fluxos mais rápidos, ciclos mais curtos, maior resistência, melhor aerodinâmica dos produtos de higiene e outras inovações entusiasmantes. Recordes vão ser batidos.

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Isto não significa que a iniciativa da DGS seja isenta de críticas. A publicação online contém, de facto, linguagem muito desagradável. Ao escrever “A menstruação é um processo fisiológico com impacto na saúde e bem-estar das pessoas que menstruam. A DGS vai realizar um diagnóstico de situação sobre a saúde menstrual em Portugal. Participe.”, a DGS está a excluir deliberadamente do seu questionário as pessoas que não menstruam. É como se, apenas por não terem o período, as vivências menstruais dessas pessoas fossem invisibilizadas. A DGS discrimina as pessoas que não menstruam, segregadas com base num preconceito que, em pleno séc. XXI, já deveria ter sido erradicado: a de que uma pessoa que menstrua está mais habilitada a falar sobre menstruação do que uma pessoa que não menstrua.  A marginalização da DGS faz parecer que existem características físicas inatas que tornam uma pessoa diferente de outra que não nasce com elas, ao ponto de isso as distinguir no que a essa característica diz respeito. Ora, a teoria moderna sabe que este tipo de raciocínio não tem qualquer base científica. As pessoas não são limitadas pela realidade biológica.

Ou seja, não é preciso ter o período para ter opiniões muito válidas sobre o que é ter o período. A menstruação também afecta a saúde e o bem-estar das pessoas que não menstruam. A DGS não pode patrocinar este apartheid. Até porque, ao fazê-lo, está a desperdiçar experiências de vida diferentes, mas igualmente ricas. Experiências que podem contribuir para um melhor entendimento da menstruação e que trazem métodos disruptivos de lidar com os efeitos mais aborrecidos de um fenómenos que é, não nos podemos esquecer, universal.

Por exemplo, o meu primo Paulo está sempre a sangrar do nariz. Às vezes, sem qualquer aviso, começa a jorrar abundantemente da narina direita – só da direita, a esquerda deve estar laqueada. O meu primo sente que é como a menstruação, mas em pior. Também é desconfortável, também não permite usar roupa branca, também atrapalha a vida sexual (quantas vezes não vi raparigas a afastarem-se dele num bar, só porque espirrou um coágulo para cima delas) mas além disso é menos previsível, pode aparecer várias vezes por mês e não tem data fixa.

E, ao contrário do período, não atrapalha apenas a vida dele. Uma vez, quando éramos miúdos, a 5 minutos de começar a meia-final do torneio de futebol de 7, em Mafra, começou a deitar sangue e tivemos de jogar com menos um durante a primeira parte. Só não fomos eliminados porque a outra equipa tinha duas raparigas.

Ao longo da vida, o Paulo aprendeu a lidar com esta fatalidade e foi desenvolvendo técnicas que lhe permitem levar uma vida normal, mesmo no auge das crises. Ele descobriu que, se esguichar uma solução de uma parte água do mar para duas partes betadine e depois enfiar um kleenex embebido em tabasco até sentir o globo ocular por dentro, apertando com força, consegue estancar o fluxo e ter um dia normal. Depois de parar de chorar, claro. Além da justiça da inclusão, a DGS não deve desperdiçar este tipo de traquejo que pode ser valioso para quem menstrua. Com as devidas adaptações, claro. Obviamente, não é sensato usar água do mar, que pode secar a área da vulva.

Pela minha parte, desejo contribuir para o desaparecimento da segregação entre pessoas que menstruam e pessoas que não menstruam. Daí que, com grande espírito cívico e de inclusão, respondi ao questionário da DGS. E, tenho de admitir, fiquei aliviado ao perceber que, afinal, a menstruação no nosso país está bem e recomenda-se. Vejamos: ao longo do último ano senti que tenho informação suficiente sobre menstruação (pergunta 8); não tive dúvidas sobre menstruação (9); não tive dificuldades em obter produtos menstruais (11); tive acesso à quantidade suficiente de produtos menstruais (12); não faltei ao trabalho por não ter produtos menstruais ou por padecer de sintomas relacionados com a menstruação (13 e 14); não tive de recorrer a um profissional de saúde por causa da menstruação (15); não tive necessidade de recorrer a produtos menstruais gratuitos (17); sinto-me confortável a falar de menstruação na minha comunidade (19); nunca senti ansiedade ou vergonha por não ter produtos menstruais adequados (20 e 22); nem isso afectou a minha auto-estima ou o meu dia-a-dia (21 e 23). Afinal, tanta coisa e, pela amostra, a menstruação em Portugal está fina e segura.