Ricardo Salgado deu-nos conta de um mundo curioso, esse dos Espírito Santo. Um mundo que funcionou lindamente durante 20 anos, como fez questão de dizer, mas que subitamente alguém fez com que deixasse de funcionar. Salgado falou durante horas deste mundo que ruiu por única e exclusiva responsabilidade do contabilista, do supervisor, dos jornais e do Governo que não quiseram fazer parte dele.

Proponho-lhe uma viagem breve por esta audição, começando pelas origens do problema na área que cumpre dizer-se que é a não financeira.

  1. O presidente do Grupo não fazia ideia, até novembro de 2013, do enorme buraco financeiro que existia na ESI. Depois de o conhecer, participou as irregularidades às autoridades do Luxemburgo, onde a ESI tinha sede, em… março de 2014.
  2. O contabilista foi o único responsável por esse buraco, mas não podia ser logo substituído porque era a única pessoa que sabia como tudo se fazia.
  3. A ESI não tinha qualquer espécie de controlo interno – muito menos era responsabilidade direta de Ricardo Salgado. Mas a ESI acabou por ser uma peça instrumental para o financiamento do grupo, por causa da crise financeira (que começou em 2008). Pressupõe-se que Salgado também não sabia disto.
  4. Salgado reconhece que, em janeiro deste ano, percebeu que já não conseguiria salvar o grupo pela ESI. E montou um plano: era preciso salvar este mundo pela Rioforte. Tinha também que tirar a ESFG da bolsa (que, assume, foi também instrumental para financiar o banco durante a crise).
  5. Dito isto, Ernâni Lopes, já falecido, foi citado para apontar a estrutura “racional” do GES como um exemplo. Funcionou bem, pelo menos durante vinte anos.

Chegados aqui, percebemos que o BES já estava em risco na viragem do ano. Foi aí que o Banco de Portugal exigiu a Salgado um plano de proteção do banco (ringfencing, na irritante expressão financeira), para evitar que as contas do grupo levassem para um buraco todo o sistema financeiro. Racional? Salgado diz que não:

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  1. O problema do GES era de excesso de endividamento. Também não se podia resolver o problema do BES sem resolver o problema do GES, alega.
  2. O ring-fencing, aliás, impediu a reestruturação do grupo – garante ele.

A conclusão é, portanto, de que a prioridade era resolver os problemas do grupo, só depois o banco ficaria a salvo. Mas o que fez então o Banco de Portugal?

  1. Tudo começou a correr mal, diz Salgado, quando o BdP obrigou o banco a fazer a uma provisão de 700 milhões. E com as notícias sobre o grupo, que afetaram a sua reputação…
  2. O regulador deu sete meses para resolver os problemas, mas isso era insuficiente. Mais: nada podia ser feito à pressa, sob pena de “alto risco reputacional” e de desvalorização dos ativos.
  3. Pior ainda quando o regulador quis afastar a família da gestão do banco. Salgado diz ter avisado para os problemas que daí viriam (mas estranhamente acrescenta que nunca teve “um sinal” de que a sua idoneidade tenha estado em causa).

Aqui chegados, o que planeava Salgado fazer?

  1. Um aumento de capital do BES, que correu lindamente, segundo diz. Mas era preciso financiamento, um apoio intercalar, ao grupo. Salgado queria um empréstimo de cinco anos. Mas o Governo recusou.
  2. Antes disso, “de forma temporária”, a administração já tinha recorrido à Tranquilidade para provisionar o Grupo, o que dava boa segurança para apoios estatais.
  3. Mas Salgado estava seguro: depois de reforçar os capitais do banco, era preciso reforçar os da ESFG. E depois os da Rioforte. “Estava tudo encaminhado”.
  4. Ao que diz o banqueiro, havia já um fundo internacional interessado na RioForte. Mas o Banco de Portugal não quis reunir com os interessados antes de vir a nova administração, aquela que já não tinha a família. Foi isso que levou os interessados a recuar (e essa foi a “sentença de morte”, decretou o banqueiro).

Pelo meio, apareceu ainda o “estranho” caso de Angola:

  1. BES teve de dar autonomia informática ao BESA em… 2009, porque o Estado angolano assim o determinou – apesar de virem de lá “informações estranhas” desde meio da década passada e de se perceber que os rácios de transformação estavam altos.
  2. O departamento de riscos angolano foi pervertido, diz Salgado. Álvaro Sobrinho não cumpriu com as regras da supervisão e havia muitas queixas sobre a sua atuação.
  3. Depois, veio garantia, que resolveu tudo – mesmo sem se saber o que mais foi feito. Só a resolução do BES acabou com a rede de segurança. E com ela, sem ele (Salgado) tornou-se “inevitável” a revogação da garantia.

Talvez esta breve cronologia peque por defeito, talvez por excesso de pessimismo.

Talvez seja mais fácil de acreditar que o mundo de Ricardo Salgado foi destruído por gente que não percebeu o óbvio. Talvez a família estivesse afinal unida (e toda ela tão responsável quanto ele, Ricardo, como fez questão de dizer o banqueiro); talvez o Banco de Portugal não tivesse de se preocupar com o BES quando percebeu que o BES estava em risco; talvez o Governo tivesse de financiar não um banco, mas um grupo, que era aliás suposto não financiar um banco que nunca antes pediu ajuda.

Talvez todos devessem ter dado uns milhões para manter aquele mundo de pé, confiando que o contabilista, saindo, deixasse as contas direitas, confiando que a crise desaparecesse para que aquele mundo ficasse igual.

Talvez acreditando nisso tudo não tivéssemos de ouvir outra vez que “o BES não faliu, foi forçado a desaparecer.”

Mas hoje, desta audição, há uma coisa que já conseguimos: que o mundo de Salgado não é deste reino – e nunca poderia existir sem ele.