Muitas vezes acusam-me de só escrever sobre radicalismos de direita. Não é verdade. No entanto percebo a crítica; o crescimento exponencial da direita radical com ideias perigosas, muitas vezes mascaradas de boas intenções, é o fenómeno recente que faz tremer os amigos da democracia. O radicalismo de esquerda também está bem vivo e recomenda-se. Não só nos partidos da Europa do Sul como, ou principalmente, disseminado nas sociedades ocidentais em diversos setores sociais que vão desde associações da sociedade civil, a partidos políticos e até à imprensa mainstream. Está tão presente nas nossas vidas (“naturalizado” em linguagem mais académica), que muitas vezes, quando o vemos criticado, nem nos apercebemos do que se está realmente a falar.

O radicalismo de esquerda como o conhecemos hoje, nasceu nos Estados Unidos. Eric Kaufman, por exemplo chama-lhe “modernismo de esquerda”. Mas esta ideologia fez escola sob outras designações consoante o problema que quer “desconstruir”. Fez o seu percurso nas universidades norte-americanas com dois desígnios: denunciar a cultura ocidental como sua adversária e lutar por uma sociedade radicalmente igualitária. Depois foi uma questão de tempo até a “ideologia do modernismo de esquerda penetrar nas instituições da alta cultura e nas instituições políticas da sociedade ocidental, a partir dos anos 1960”.

Após vencida a batalha justa pelos direitos civis, introduziu-se, paulatinamente, através de um conjunto de regras de convivência às quais todos tinham que obedecer, caso contrário, estariam a ferir a sensibilidade dos mais frágeis na sociedade. Aos poucos foi-se tornando a norma e extravasando para outros países, especialmente na Europa Ocidental. Caso não nos comportemos ou pensemos como manda este figurino politicamente correto, não passamos de “brancos retrógrados”, o “outro” inventado pela esquerda modernista, para usar a expressão de Eric Kaufman.

Em que é que consiste este comportamento? A origem é uma ideia ocidental, no mínimo, original: ódio pelo nosso passado; desprezo pelo nosso sistema de valores, considerado manipulador e centrado exclusivamente nos interesses económicos e desumanizados; a reprodução, geração após geração, de hierarquias em que o homem (apenas o homem) branco defende a sua preponderância sobre todos os outros. Aos poucos esta agenda política foi sendo estendida a outros assuntos nacionais e internacionais. Pode haver até um fundo de verdade em qualquer destas críticas. O problema é que a solução que apresentam é um pensamento único, politicamente correto, de defesa intransigente de um conjunto de valores e comportamentos. Acompanhado de um guião de como se deve proceder (falar, pensar, agir) para se ser progressista, ou seja, uma pessoa de bem. Por outras palavras, divide-se o mundo entre aqueles que são moralmente aceites – os que subscrevem a cartilha – e os que têm uma postura imoral perante a sociedade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É a clássica divisão entre bons e maus. E quando o ataque aos imorais não é feroz, dá lugar à complacência. O que não existe é o meio-termo nem a ideia de que há caminhos diversos e ideologias rivais que até podem querer chegar aos mesmos fins por meios diferentes. O que não existe é a ideia de que há milhões de pessoas dispostas a combater injustiças e a manter a sua identidade, que não querem rejeitar o passado, mas aprender com ele. Que podem querer abraçar a diversidade e não acreditam que para isso é preciso deixarem de ser quem são.

As consequências podem ser muito graves. Veja-se o exemplo americano: originam contramovimentos conservadores também eles radicalizados, como o dirigido por Donald Trump, que como soubemos pelas sondagens desta semana veio para ficar. Estimulam o crescimento oportunista da extrema-direita um pouco por toda a Europa: entre outros problemas, as populações estão cansadas de serem os tais “brancos retrógrados”, que lhes digam como devem ser e optam por votar em soluções que acabem, de uma vez por todas, com a pretensa superioridade moral de alguns.

Mas não é só. Em sociedades mais saudáveis levam à autocensura ou até à censura velada, reduzem a margem de manobra para debater os problemas, diminuem o pluralismo e a liberdade de expressão. Criam-se clivagens desnecessárias e encolhe-se, cada vez mais, o centro moderado, onde o debate genuíno costuma acontecer. Não é possível ter discussões importantes que exigem sensibilidade e racionalidade sobre temas como o racismo, a igualdade de género, as injustiças e a mobilidade social.

A extrema-esquerda não desapareceu. Normalizou-se e expandiu-se até se tornar quase inseparável das nossas vidas política e social. Se continuarmos a permitir que divida o mundo entre “os donos da verdade” e os “retrógrados”, um dia, que me parece que não andará longe, poucos haverá com capacidade de dialogar e fortalecer a nossas democracias em fase débil. Até porque muitos moderados acabam por se render a esta hegemonia de pensamento. Ou, pelo menos, a não a contrariar.

Soluções? Continuar a defender os valores em que cada um acredita: no meu caso, a moderação, as diversas liberdades, incluindo a de expressão, a independência de pensamento, a defesa do debate de ideias, a prática da tolerância com os que pensam de forma diferente (menos ideias intoleráveis que devem ser denunciadas, mas não eliminadas). E sobretudo não deixar que se expanda o mito do “branco retrógrado”. A cor da pele, seja ela qual for, não determina a nossa forma de pensar. A defesa da diversidade, do antirracismo, de qualquer tipo de descriminação não são um exclusivo dos progressistas. São causas justas que devem ser abraçadas por todos, conservadores, liberais, à esquerda ou à direita. Ainda que cada qual veja os problemas da sua forma e soluções diferentes para os mesmos.

As “guerras culturais”, importadas dos Estados Unidos, só poderão trazer-nos o que trouxe para Washington: radicalismo e intolerância. Se me perguntarem, não precisamos disso para nada na nossa vida coletiva.