Estava duplamente perdido. Primeiro, de deslumbramento, com a missão e a localização: ali ia eu, com vinte aninhos e o meu único blazer, encarregado de reportar um debate parlamentar. Depois, literalmente perdido. Para um desconhecido sem direito a excursão, os corredores da Assembleia da República podem ser traiçoeiros e labirínticos. Foi isso que sucedeu comigo. Nunca cheguei a horas àquele debate parlamentar. Um homem de barbas grisalhas, alto e de gravata listada, subentendeu a minha deambulação e cumprimentou-me. Disse-me o seu nome, e eu sabia quem era; eu disse-lhe o meu, que ninguém saberia quem era. Apertámos as mãos no topo de uma escadaria que hoje conseguiria descer de olhos vendados. Até hoje não entendi porquê, mas não ficou claro, nessa primeira conversa, que me encontrava naquele dia no parlamento por ofício jornalístico. O deputado, cujo cartão de visita apresentava como Presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros, supôs que recebia um jovem estudante, colunista ou cronista de uma publicação universitária ou menor. Não era verdade, e talvez por mea culpa tenha deixado a informalidade do diálogo sobreviver à identificação profissional. Sentámo-nos e conversámos até uma reunião qualquer. Lembro-me como se fosse ontem. Não houve nem esquerdas nem direitas, nem partidos nem igrejas. Só histórias, só ideias, só a Política como ela é para lá do que está hoje, e um pouco de Marco Aurélio. Lembro-me de ir a correr para o carro, tentando percorrer o caminho que ainda desconhecia, para não esquecer nada do que me dissera aquele senador da República, que privara de perto com fundadores da nossa Democracia, e escrevê-lo no meu caderno como era devido. O deputado era Sérgio Sousa Pinto.

Devo-lhe este texto pelo modo desprendido, de servente público, com que me mostrou a Assembleia e a História do regime — sempre sem qualquer laivo de arrogância ideológica ou sobranceria intelectual. O filósofo Michael J. Oakeshott definiu a política como “uma conversa em que o passado, o presente e o futuro têm cada um a sua voz, em que embora uma ou outra possam ocasionalmente prevalecer, nenhuma domina permanentemente as demais, e é por isso que somos livres”. Nesta meia década de escrita para jornais e convívio com políticos, não conheci parlamentar ou figura pública mais empenhada em defender essa Liberdade.

Portugal é, comprovadamente, um país que se espanta com a Liberdade. Vemo-lo nas pequenas coisas (uma boa entrevista presume, inevitavelmente, péssimas consequências) e nas coisas menos pequenas, como a educação dos nossos filhos. O facto de Sérgio Sousa Pinto ter assinado um manifesto que defende o direito dos dois alunos de Famalicão não serem reprovados por recusarem frequentar a disciplina de Cidadania devido aos seus maleáveis conteúdos foi um exemplo, infelizmente, característico. Um modesto estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos comprova a primazia que os pais têm na educação das suas crianças e uma leitura atempada da nossa Constituição facilmente expõe a ilegalidade de qualquer educação que imponha “diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. Está lá e não é de agora, sendo escusado repetir, reescrever e relembrar o que o torneio de abaixo-assinados insiste em ignorar. Afinal de contas, é só da lei fundamental que estamos a falar.

Se as imagens que nos vão chegando forem reais, e até agora ninguém as desmentiu, o Estado promover a obrigatoriedade de uma disciplina que pergunta a crianças de 10 e 11 anos por quem se sentem atraídos fisicamente é, numa palavra, insano — e de progressista não tem nada, antes pelo contrário. Numa democracia, o Estado não tem nada que ver com quem os seus cidadãos dormem ou dormirão. Questionar pré-adolescentes sobre as suas preferências sexuais é uma invasão descabida e autoritária do Estado na vida íntima e no desenvolvimento das crianças. Não entender isto é não conhecer os limites da presença estatal num regime que se queira democrático.

O que me causou incómodo não foi tanto a sonsice da multidão reagente, mas antes o ataque concentrado e imoral a Sousa Pinto, com trinta anos de vida política socialista na praça. Luís Osório, ex-diretor de jornais como o i e o Sol, veio sugerir que Sousa Pinto saísse do PS “o mais rapidamente possível”, ocupando “um lugar na trincheira contrária”. Num tom mais persecutório, Inês Pedrosa, comentadora da RTP, veio apontá-lo como estando para lá do pluralismo possível, considerando-o um “facho mofento”. Isto porque Sousa Pinto cometeu o terrível crime de subscrever um manifesto que não quer prejudicar o percurso académico de dois estudantes em nome de ortodoxias, como vimos, inconstitucionais.

Pessoalmente, é com ironia que vejo os grandes paxás do progressismo internauta ensaiarem uma purga a um homem que já foi escoltado pela polícia em nome das suas crenças — no tempo em que as causas fraturantes eram bem menos unânimes e exigiam mais coragem física do que um tweet. Quanto a Sousa Pinto, que é da esquerda que fundou a democracia e não daquela que vive de a clivar, deixo-lhe a minha gratidão e o meu respeito. Aos demais, apenas uma pergunta: será que podemos chamar democracia a um regime que chama “fascistas” aos seus democratas?

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