Têm sido reiteradas as chamadas de atenção do Papa Francisco para a rigidez do clero, que entende como um certo rigorismo doutrinal e que considera uma das mais perniciosas características do clericalismo.

Como declarou no passado mês de Junho: “A rigidez está de moda hoje em dia, e a rigidez é uma das manifestações do clericalismo. O clericalismo é uma perversão do sacerdócio: uma perversão. E a rigidez é uma das suas manifestações”. “Quando encontro um seminarista ou um jovem sacerdote rígido” – comentou o Papa – “penso que tem algum problema interior. Na origem da rigidez há um grave problema, porque a rigidez é sinal de falta de humanidade.”

Se se entender o clericalismo como um exercício autoritário do sacerdócio, é fácil compreender esta preocupação pastoral do Papa Francisco. Com efeito, o padre-proprietário entende que é dono da Igreja e dos fiéis que deve pastorear. Pelo contrário, quem exerce o ministério pastoral como um serviço a Deus e aos fiéis está sempre disponível para proporcionar às almas os auxílios espirituais de que carecem e a que têm direito.

O padre, que não é um funcionário ou burocrata das coisas espirituais, deve facilitar aos fiéis o acesso à graça divina. Com certeza que há condições indispensáveis para a administração dos sacramentos como, por exemplo, para quem se confessa, estar arrependido e ter um firme propósito de emenda. O confessor não está autorizado a absolver quem não esteja contrito, ou não queira evitar o pecado. Mas quando o fiel ainda não tem essa disposição, o sacerdote deve ajudá-lo, para que alcance o arrependimento necessário para a validez da sua confissão sacramental.

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Entre o excesso de zelo de quem exclui o pecador não arrependido e o sacrilégio de quem o admite à comunhão, sem estar para o efeito devidamente habilitado, há um caminho a percorrer: o da conversão do coração e da vida. Os bons pastores são os que encaminham as almas para essa mudança interior e exterior, pois não seria benéfico para o fiel encontrar irremediavelmente fechada a porta da graça; nem que lhe fosse permitida uma hipócrita duplicidade, ou seja, ser tido por cristão, sem o ser de facto.

Não obstante as chamadas de atenção do Papa Francisco, parece que, por parte de alguns pastores, mais do que excesso de rigidez, se verifica um exagerado permissivismo clerical. Quando se permite a comunhão eucarística aos que, estando canonicamente casados, vivem maritalmente com outra pessoa, ou se abençoam uniões que não são conjugais, não parece sobrar rigidez, mas faltar coerência por parte dos pastores que se permitem esse tipo de intervenções escandalosas.

É verdade que o Papa Francisco, como vem a propósito lembrar neste ano Amoris laetitia, ensina nessa encíclica, que uma situação objectiva de adultério não corresponde de per si a uma situação subjectiva de pecado e, portanto, nesse caso, seria admissível admitir à comunhão quem se encontrasse nessa situação excepcional.

Um exemplo clássico da literatura portuguesa: D. Madalena de Vilhena casou em primeiras núpcias com D. João de Portugal, desaparecido em Alcácer-Quibir. Passado muito tempo sem notícias do marido e presumida a sua morte, casou com Manuel de Sousa Coutinho, que depois professou como Frei Luís de Sousa. Inesperadamente, o primeiro marido regressou, disfarçado de romeiro. Estando vivo, era óbvio que D. Madalena não podia ter ‘recasado’ e, por isso, a sua segunda união era inválida. Contudo, sendo presumível a morte do primeiro marido, pela derrota sofrida e, sobretudo, pelo muito tempo entretanto decorrido, D. Madalena de Vilhena e o seu segundo marido, embora objectivamente adúlteros, o não eram moralmente.

Esta constatação do Papa Francisco, que escandalizou alguns eclesiásticos mais rígidos, não é nenhuma novidade. Mas seria certamente exagerado pensar que, à luz deste exemplo, se pode presumir que todos os ‘recasados’, embora em situação canónica irregular, não têm culpa e, por isso, estão subjectivamente aptos para receber a comunhão eucarística… Até porque, salvo melhor opinião, não é provável que ainda haja sobreviventes da batalha de Alcácer-Quibir!     

Talvez a rigidez mais típica seja a do tradicionalismo, que pretende manter os ritos e formas litúrgicas anteriores à reforma conciliar. Com certeza que, na liturgia católica, há matérias irreformáveis na sua essência, como a fórmula baptismal, ou a oração do Pai Nosso, mas todos os elementos de origem eclesiástica admitem reforma pela competente autoridade eclesial. Seria um anacronismo defender a reforma litúrgica do Concílio de Trento contra a reforma do Concílio Vaticano II, ou de um Papa contra outro Papa. Também não seria razoável diabolizar as antigas tradições litúrgicas que, na unidade da fé, a Igreja observou. Com efeito, se se admite o rito bracarense, ou o ambrosiano, não parece razoável que não se respeitem também outras expressões da liturgia católica, que até já foram lei universal da Igreja. Foi neste sentido que Bento XVI, contra a rigidez dos que pensam que a Igreja católica nasceu no Vaticano II, admitiu a celebração extraordinária do rito anterior à última reforma litúrgica.

A Santa Sé defende a legítima liberdade de os fiéis escolherem entre a comunhão na mão, ou directamente na boca. Os pastores, salvo um caso excepcional, como pode ser uma pandemia, não podem impor a sua opção: nem os que preferem a comunhão na boca a podem negar na mão aos que legitimamente optaram por essa forma de comungar nem vice-versa. É rígido quem impõe, em circunstâncias normais, uma modalidade, excluindo absolutamente a outra: o sacerdote não tem poder para negar a comunhão (ou seja, ‘excomungar’ de facto), quem esteja canonicamente habilitado para comungar. A Eucaristia não é, como pretende o clericalismo, uma graça concedida arbitrariamente pelo ministro, mas um direito fundamental dos fiéis, que só lhes pode ser negado por justa causa, ou seja por algum impedimento que seja canonicamente relevante (não estar baptizado, estar excomungado ou em estado de pecado grave, defender o aborto ou a eutanásia, etc.).

Mas não é verdade que, em termos pastorais, seria conveniente uma certa homogeneidade na forma como os fiéis recebem a comunhão?! Não é confusa a celebração em que uns comungam na boca e outros na mão?! Talvez, mas mais vale a liberdade do que uma imposição clerical que converta os fiéis em marionetas do padre. Também seria mais homogénea a celebração em que todos se apresentassem de uniforme, mas uma tal prática seria de todo alheia à tradição cristã. A unidade na Igreja não é uniformidade e, por isso, a fé, sendo a mesma para todos os católicos desde há dois mil anos, expressa-se segundo as diversas culturas e eras.

É, certamente, contra esta rigidez e clericalismo que o Papa Francisco tanto tem insistido recentemente, ciente da necessidade de defender sempre, na felicíssima expressão paulina, a liberdade gloriosa dos filhos de Deus (Rm 8, 21).