1. Era uma acusação inevitável. Depois do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa recusar a suspensão provisória do processo proposta pelo Ministério Público (MP) por os arguidos, nomeadamente os três ex-secretários de Estado do Governo de António Costa, colocarem em causa a “credibilidade das instituições democráticas” ao aceitarem convites da petrolífera Galp Energia, avaliados entre 800 a mais de 2.000 euros, para assistirem ao jogos do Euro 2016, o MP tinha mesmo de acusar os 16 arguidos individuais e a holding da Galp Energia e uma sua subsidiária.

A grande novidade do despacho de acusação é a proibição do exercício de funções públicas que o procurador Pedro Roque requereu para Fernando Rocha Andrade (ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais) e para os restantes seis ex-membros do Governo de António Costa envolvidos no caso. É importante não esquecermos que, ao contrário do que muitos advogados gostam de fazer crer, o MP não é uma instituição de mau feitores. O MP representa o Estado e, só o facto de ter requerido tal proibição, faz com que a mesma tenha de ter consequências políticas a curto prazo.

E porquê? Por três razões:

  • A medida cautelar significa que Rocha Andrade não tem, na perspetiva do Estado, idoneidade suficiente para exercer qualquer cargo público, nomeadamente para exercer o seu cargo atual: vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS. O mesmo acontecendo aos autarcas envolvidos: o comunista Álvaro Beijinha (edil de Santiago do Cacém) e o socialista Nuno Mascarenhas (edil de Sines). E, por maioria de razão, aos acusados Vítor Escária (ex-assessor económico de António Costa), a sua mulher Susana (atual diretora de serviço do Ministério do Ambiente, Pedro Matias (ex-chefe de gabinete no Ministério da Economia), Bezerra da Silva (ex-chefe de gabinete de Rocha Andrade).
  • Por outro lado, o referido pedido significa que pode a perda de mandato de Rocha Andrade e dos autarcas de Santiago do Cacém (Álvaro Beijinha/CDU) e de Sines (Nuno Mascarenhas/PS) é uma hipótese real e só depende de uma eventual condenação.
  • E, finalmente, porque há uma suspeição clara de que os acusados terão cometido um crime grave, visto que lhe terão sido oferecidas vantagens patrimoniais às quais não tinham direito.

Por tudo isto, fico surpreendido (ou talvez não) por Fernando Rocha Andrade, Álvaro Beijinha e Nuno Mascarenhas ainda não tenham, no mínimo, apresentado a suspensão do exercício das funções públicas enquanto o processo decorrer.

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2. Talvez ainda não o tenham feito porque há uma proposta do novo Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos na Comissão para o Reforço da Transparência que, a ser aprovada, significará o arquivamento dos autos do Galpgate aberto contra aqueles três homens mas também o fecho de outros semelhantes, como o Huawei.

Como já escrevi aqui, há claramente a leitura que a atual redação do art. 16.º (Ofertas Institucionais e Hospitalidades) da proposta que está em cima da mesa significará uma espécie de amnistia para os políticos envolvidos no caso Galpgate (e noutros casos), porque a mesma legaliza qualquer oferta superior a 150 euros. Pois os deputados apenas terão de declará-las — não existindo qualquer proibição.

E aqui impõe-se uma pergunta ao Grupo Parlamentar do PS — do qual, repete-se, Fernando Rocha Andrade é vice-presidente:

Que lógica terá que o PS aprove uma lei no Parlamento que contradiz total e absolutamente o Código de Conduta que o Governo que apoia aprovou na sequência precisamente do caso Galpgate?

É que o Código de Conduta, feito como resposta à demissão dos três secretários de Estado (um deles, entretanto, falecido) envolvidos no caso Galgate, diz claramente, que “existe um condicionamento da imparcialidade e da integridade do exercício de funções quando haja aceitação de bens de valor estimado ou superior a 150 euros.” (artigo 8.º, n.º 2). O mesmo se verifica com “convites ou outros benefícios similares com valor estimado a 150 euros” (art. 10.º, n.º 2). Isto é, os membros do Governo são obrigados a recusar tais bens ou convites (art. 4, alínea b)

Por isso mesmo, aqui ficam mais duas perguntas:

  • o PS vai aprovar uma lei que contraria claramente o Código de Conduta aprovado pelo Governo de António Costa? É que tal lei vai anular o efeito prático do documento vinculativo do Executivo.
  • E se o PS vai contra o Governo, porque o faz?

Sobre esta última pergunta, só há uma resposta: para proteger Fernando Rocha Andrade mas também todos os outros socialistas envolvidos no caso Galpgate.

E, já agora: o que vai fazer Pedro Matias, atual presidente do Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ), que ‘se fez’ descaradamente aos bilhetes para a final do Euro 2016? É que a Galp é acionista/associado do Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ) — uma instituição privada mas com o estatuto de utilidade pública. Outros acionistas/associados do ISQ como a EDP, REN ou Partex — que têm regras de compliance bastante restritas — vão permitir que o ISQ seja liderado por alguém sob suspeição?

3. Não deixa de ser extraordinário que o PS queira defender um homem que, enquanto secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não viu qualquer problema em aceitar convites avaliados entre os 4 mil euros da empresa que tinha pendentes os seguintes conflitos com a Autoridade Tributária:

  • 27 ações nos Tribunais Tributários e em Tribunais Administrativos e Fiscais no valor de 69,5 milhões de euros;
  • Ações judiciais de 21,7 mihões de euros contra o Estado sobre as obrigações decorrentes da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE);
  • E 24 procedimentos tributários no valor total de cerca de 28 milhões de euros relacionados com a cobrança da CESE.

A Rocha de Andrade, um homem inteligentíssimo, não ocorreu uma noção básica de conflito de interesses — quando, no futuro, podia vir a ser chamado a decidir uma reclamação hierárquica apresentada pela Galp? Só depois da revelação do caso, e ainda antes de se demitir, é que se lembrou de informar que iria pedir escusa sobre casos relacionados com a Galp. Nada surpreendente em alguém que sempre detestou de forma autoritária o escrutínio jornalístico (ou de outra natureza) desde o tempo em que foi responsável pelos catastróficos contratos dos helicópteros russos Kamov.

E o que dizer de Vítor Escária, outro caso de superioridade intelectual efetiva que dois primeiros-ministros (José Sócrates e António Costa) não dispensam mas que também desconhece o significado de conflito de interesses? Para Escária não há qualquer problema em usar para fins particulares uma rede de contactos diplomáticos na Venezuela que construiu enquanto assessor do gabinete do primeiro-ministro. Seja para ajudar Sócrates  conseguir contratos para as empresas amigas, seja para o próprio Escária ser sócio de uma empresa que só foi criada após garantir um contrato de mais de 30 milhões de euros com a Venezuela — e que, curiosamente, era liderada pelo ex-ministro Mário Lino, outro homem que abriu muitas portas a empresas portuguesas no regime de Chavéz e Maduro.

Parece que a Comissão para o Reforço da Transparência no Exercício de Funções Públicas vai reunir-se esta quarta-feira (dia 15 de maio) às 15h. Apesar da pouca transparência em esconder o assunto da reunião, esperemos que os inúmeros erros que já foram detetados na proposta que está em cima da mesa sejam devidamente retificados. Pelo menos, há sempre a esperança da nova regra inventada por Rui Rio — o que é aprovado em Comissão Parlamentar não tem qualquer valor político — ser novamente aplicada.

É que se não for assim, o caso Galpgate vai mesmo ser arquivado por interferência do Parlamento.