No dia em que escrevo, a maior parte da imprensa europeia não tem chamadas de primeira página para a guerra de agressão russa na Ucrânia. Os jornais que lhe fazem referência na capa, fazem-no em pequenos quadrados, em lugar secundário. E não era porque não tivesse acontecido nada: nas páginas interiores, havia notícias de mais bombardeamentos, e de uma viagem da presidente da Comissão Europeia a Kiev. Mas em França, as manchetes falavam da reforma das pensões, em Espanha, das relações com Marrocos, e em Portugal, do palco da JMJ. Se um dia os nossos netos nos perguntarem o que nos inquietava quando uma parte da Europa estava a ser devastada pela guerra, teremos de responder: um palco em Lisboa.
Eu próprio, nestas colunas semanais, não escrevo sobre o tema há quatro meses. E no entanto, a invasão russa da Ucrânia é a maior guerra na Europa desde o fim da II Guerra Mundial, sem esquecer as guerras de partilha da Jugoslávia na década de 1990. Há um ano, quando Putin concentrou tropas à volta da Ucrânia, ninguém acreditou que uma guerra seria possível. E quando começou, ninguém teria acreditado que um ano depois a guerra, ainda em curso, pudesse alguma vez passar para a segunda linha da actualidade noticiosa.
O nosso mundo, afinal, não acabou. Nada, do que nos disseram que ia acontecer, aconteceu. A Ucrânia não se desmanchou imediatamente sob a agressão russa. As sanções económicas ocidentais não destruíram a ditadura de Putin. Os cortes de fornecimento de gás russo não fazem tremer a Europa ocidental. Os refugiados foram absorvidos, a inflação está a descer. A guerra é na Europa, mas por vezes parece decorrer numa daquelas paragens remotas onde os conflitos militares são endémicos. Anos de ausência de conflito em terra europeia quase nos fizeram acreditar que uma guerra tão perto de casa, para não dizer dentro de casa, e envolvendo quase todas as grandes potências, directa ou indirectamente, seria insuportável. Mas afinal, não. Afinal, vive-se bem a guerra.
E esse é talvez o pensamento mais perigoso. No caso dos governos ocidentais, está a dar-lhes margem para hesitar e deixar andar, como se constata pelo modo como limitam e demoram o armamento da Ucrânia. Parecem não querer que Zelensky perca a guerra, mas também não parecem muito empenhados em que a ganhe. Quando se fala de uma vitória ucraniana, nunca falta quem venha alarmar-se com uma resposta nuclear de Putin, ou até, no caso de a sua ditadura cair, com a “anarquia” na Rússia. A opção, depois de tantos cálculos e divergências, parece portanto ser a de tornar a guerra numa doença crónica, à espera de ver o que acontece. É, no fundo, a velha tentação ocidental da “drôle de guerre” de 1939, quando os Aliados apostaram nas sanções económicas para, sem combater, derrubarem a ditadura de Hitler.
Pode ser um grande erro. Primeiro, porque fará a guerra durar, e enquanto a guerra durar, há um país na Europa, a Ucrânia, que está a ser gradualmente destruído, e onde morrem militares e civis todos os dias. Segundo, porque não sabemos o que resultará do arrastamento da guerra. Os governos ocidentais acreditam que a falta de sucesso minará o poder de Putin. Putin, pelo seu lado, julga que a sua ditadura aguentará melhor a continuação da guerra do que as democracias ocidentais, onde um dia espera ouvir muita gente a duvidar das vantagens de um indefinido apoio à Ucrânia. Não sabemos, de facto, a quem beneficiará uma guerra sem fim. É por isso que aos governos ocidentais conviria admitir a possibilidade de proporcionarem à Ucrânia os meios para uma guerra curta e decisiva. Não, não se vive bem com uma guerra.