Ana Pinho, que tinha deixado a secretaria de Estado da Habitação no passado mês de Setembro sem se perceber muito bem porquê, não ficou muito tempo desocupada. Entretanto assinou um contrato para a prestação de “serviços técnicos especializados para a elaboração de um plano de ação centrado no potencial de mobilização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), no domínio habitação e intervenções integradas em comunidades desfavorecidas” com a Área Metropolitana de Lisboa, contrato esse com a duração de três meses e que lhe renderá 57 mil euros. O PRR ainda nem sequer foi aprovado em Bruxelas, mas há já quem facture.

Surpreendido? Não fique. Apesar de tudo Ana Pinho tinha curriculum e experiência nesta área. É arquitecta e há muitos anos que trabalha em políticas de habitação. A sua experiência profissional não passou apenas pelos gabinetes ministeriais onde chegou depois de uma carreira na Juventude Socialista, que é tudo quanto tem para apresentar o novo director-geral da Segurança Social, Tiago Preguiça. O homem que, ao que parece, terá de “preparar medidas orientadas para o reforço da eficácia e modernização da acção destinada a efetivar o direito à Segurança Social” ou dirigir a elaboração de “estudos especializados no domínio da análise actuarial e económico-financeira do sistema de Segurança Social”, tem como qualificações uma licenciatura em estudos europeus, as guerras da JS de Santarém e quatro anos de experiência nos gabinetes de Vieira da Silva e António Costa. Para o actual PS é quanto basta para ir dirigir um serviço público tão importante.

Como é que estas coisas são possíveis? São possíveis porque somos governados pelo partido que nunca quis discutir o significado dos anos de José Sócrates, um partido que se confunde a si próprio com o Estado. São possíveis porque temos um Governo onde um terço dos que nele se sentamforam ministros, ou secretários de Estado, ou membros de um qualquer gabinete ministerial, nos anos desse mesmo José Sócrates. São sobretudo possíveis porque os portugueses toleram.

Por isso as coisas não mudam – degradam-se. E nós sabemos que não vão melhorar, ou pelo menos não vão melhorar como podiam, e não parecemos incomodados com isso. Neste momento estamos confrontados com um plano, o nosso famoso Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que já sabemos que não nos leva a lado nenhum, mas estamos mais ou menos conformados com isso e atentos à única coisa que vai interessar: apanhar as migalhas do que sobrar da bazuca que aí vem.

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É realmente espantoso como em poucos meses se passou do entusiasmo com o dinheiro que “nos ia salvar” para a indiferença perante a “vitamina” que já ninguém entende bem para o que servirá, pois vai servir para tudo, o que é o mesmo que dizer que não vai servir para nada.

A falta a ambição é tamanha que já passou dos discursos da oposição para as letras pequeninas dos documentos oficiais – e está agora plasmada nos documentos oficiais porque, apesar de tudo, em Bruxelas alguém vai olhar para os números e verificar se eles batem certo. Foi dessa forma que ficámos a saber que o crescimento previsto para os anos pós-pandemia continuará a ser anémico: uma média de 2,2% até 2025, mesmo assim uma previsão mais optimista que a do Conselho de Finanças Públicas e do FMI.

Contudo, para que dá um crescimento de 2,2%? E que vale esse crescimento se pensarmos que dois terços dele deriva directamente da injecção de fundos europeu, não é mérito nosso? E que partido poderemos nós tirar dele se pensarmos em todos os encargos que entretanto fomos acumulando?

Estas perguntas arrepiam porque, como justamente chamou a atenção Joaquim Miranda Sarmento, há nos anexos do Programa de Estabilidade que acompanha o PRR um quadro que nos deixa gelados. É o quadro A1.12, relativo à sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas. Miranda Sarmento olha para as previsões a 2040, eu fico-me pelas a 2030, que já são suficientemente arrepiantes.

Ora bem, no final desta década a despesa pública com pensões, que representava 12,7% do PIB em 2019, representará 14,2%. São mais 1,5 pontos percentuais da riqueza nacional, o que a preços actuais representa uns 3 mil milhões de euros.

Mas não ficamos por aqui. As despesas com saúde, também um efeito do envelhecimento do população, mas não só, deverão passar de 5,7% para 6,3% do PIB, e as com cuidados de longa duração subir de 0,5% para 0,6%. Ou seja, em conjunto mais 0,7 pontos percentuais.

Enquanto isto o Governo prevê que se poupe – vejam lá! – na Educação, cuja despesa deverá cair o equivalente a meio ponto percentual, de novo um efeito perverso do envelhecimento da população, pois temos cada vez menos crianças e jovens nas nossas escolas.

Se isto não é um futuro sombrio, então eu não sei o que é um futuro sombrio. Contudo é o futuro que surge retratado nos documentos que o ministro João Leão enviou para Bruxelas na esperança que os burocratas da Comissão lhe aprovem as contas e libertem o dinheiro europeu, pois sem esse dinheiro europeu nem esta ambição rasteirinha chegará a ver a luz do dia.

Agora dir-me-ão: e o que têm a ver os dois primeiros parágrafos desta crónica, onde dei conta do clientelismo que se tornou a imagem de marca da governação, com este resultado final? A minha resposta é que tem tudo a ver pois o Estado e a sociedade que temos não respondem pelo mérito, não estão abertos à inovação e à concorrência, não promovem o que é novo e pode criar riqueza, antes pelo contrário, e quando isso acontece  perpetua-se a pobreza. Mas não só a pobreza — também o chico-espertismo (para os que podem) e o acomodamento (para os que desistem).

E hoje parece que se desistiu.

O PRR vai servir sobretudo para financiar o Estado, para permitir ao Estado realizar os investimentos que a austeridade escondida dos últimos anos obrigou a adiar? “É melhor que nada”, “antes tarde que nunca”, “ao menos assim ainda haverá contratos e concursos públicos, algum dinheiro irá para os privados”. Eis os argumentos da submissão. Ou da rendição, se preferirem: se não conseguirmos ver o copo a encher, ao menos dizemos que ele ainda só está meio vazio.

E depois, um empréstimo aqui, um concurso acolá, uma benesse mais adiante, tudo a par com a sempre inestimável colaboração das “associações empresariais”, e lá temos o consenso necessário para o PRR seguir em frente porque, no fim do dia, as actividades que viveram sempre encostadas ao Estado não deixarão de abocanhar o seu quinhão. Essas, mais os rentistas e os sempre protegidos incumbentes. Problemas terá quem quiser romper com a modorra vigente, como problemas tem quem por azar tropeça no Estado e num funcionário “mais zeloso”. Veja-se, por exemplo, como o nosso Infarmed bloqueou 40 contentores de produtos de higiene corporal vindos do Reino Unido por causa do Brexit, produtos iguaizinhos aos que cá chegavam antes do Brexit, e que lá aguardam homologação, algo que não aconteceu em nenhum outro porto do continente europeu. O Kafka português sempre superou a imaginação do original e nunca perdeu uma oportunidade de destruir valor na economia.

Mesmo assim os socialistas que nos governam acham que não necessitam de discutir o legado dos anos de José Sócrates, o principal partido da oposição continua desaparecido em combate e o tempo de antena da pandemia contribui para que estes debates passem por nós quase sem nós darmos por eles. Nada de muito novo no fundo:

E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos; o país distraído; nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os impuros e nulos”. (Eça de Queirós, As Farpas, 1871)

Mudamos menos do que julgamos.