Há momentos em que sentimos que o mundo mudou. Provavelmente ele já tinha mudado, mas não nos tínhamos apercebido disso. Ou talvez a confrontação com uma realidade radical nos convide, na simplicidade, a decidir o que nos é essencial, para lá das narrativas complexas da “geopolítica” e das “estratégias” que só alguns eleitos compreenderão.
Nunca a dissonância entre a ambição de alguns líderes e as aspirações dos povos foi tão evidente e tão percetível. A globalização da informação e a integração do planeta faz com que, para lá dos diretórios dos Estados, a maioria das pessoas tenha alargado o espaço da sua cidade aos que, consigo, partilham ideais comuns, ultrapassando fronteiras físicas e convenções políticas. É hoje visível a existência de uma cidadania global, que partilha valores essenciais, e que mostrou que não vai ficar à espera dos Estados e dos políticos para protestar, dar, receber e acolher. Há uma posição de força quase unânime que está a obrigar os poderes políticos a irem mais além do que as narrativas geopolíticas e os jogos de tabuleiro sob o xadrez mundial antecipariam, criando condições para se fazer mais do que muitos esperariam.
Não vou falar de Putin, um homem que decidiu vestir a pele de urso predador, forçando uma guerra para a qual, no quadro dos valores da cidadania global, não há explicação. Não vou, tão pouco, perder-me em elogios a Zelenski, que descobriu a heroicidade nas suas tristes circunstâncias. Vou falar, sim, do povo polaco que abriu a porta das suas casas para acolher famílias ucranianas; do pianista italiano Davide Martello que carregou o seu piano até à fronteira com a Ucrânia, para lhes transmitir a paz através da música (espero que não faça jus ao nome na hora de tocar o instrumento); ou das centenas de pessoas, empresários, motoristas, gente como José Maria Ferreira, da Póvoa do Varzim, que simplesmente pegou nas suas carrinhas e nas suas pessoas para ir resgatar, inclusive com incursões perigosas em território ucraniano, mulheres, jovens e crianças que precisam de fugir. São de perder a conta as iniciativas, das mais arrojadas às que simplesmente sinalizam virtude, que acordaram as pessoas para os seus deveres de cidadania, onde cada um, à sua maneira, optou por assumir uma posição de recusa absoluta da guerra e da violência. E se, para muitos, no dia 24 de fevereiro de 2022 o mundo acordou pior, a humanidade, essa, em reação à maldade personificada em Putin, regenerou-se, trazendo à tona a força do Amor.
Um Amor que com a sua força obrigou a Alemanha a suspender o projeto Nordstream 2, e o SPD, pela primeira vez em vinte anos, a demarcar-se sem hesitações, do pérfido e histórico chanceler Gerhard Schröder. Que convidou vários partidos políticos a discutir, finalmente e com realismo, questões como transição e autonomia energéticas. Ou que, por cá, levou partidos como o PCP e o BE a libertarem-se à força (uns mais rapidamente do que outros, é certo), da nostalgia soviética.
Há que dizer que Putin, de forma involuntária, fez mais pelo ideal europeu do que muitos dos seus defensores. Se o seu objetivo é inscrever o seu nome na História, Putin, pelos seus méritos, poderá vir a ser estudado ao par de Robert Schumann ou Jean Monnet, tal o contributo que está a dar para a arquitetura da União Europeia: em duas semanas, por influência de Putin, a Europa tomou posições claras e assertivas (algo não muito habitual), em relação a temas como alargamento a Leste, independência energética, acolhimento de refugiados e, até, utilização de fundos europeus para defesa. A invasão da Ucrânia uniu a UE e deu-lhe um sentido que parecia estar perdido, valorizando-a junto dos cidadãos, precisamente por ter recuperado, em 2022, as mesmas preocupações que inspiraram os fundadores: unir os povos da Europa no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, e criar uma comunidade económica europeia à volta do carvão e do aço. Ajudou ainda a reforçar o compromisso dos membros com a NATO, seja porque vários países vieram anunciar dotações reforçadas para os orçamentos da Defesa (que há várias décadas, os EUA reclamavam que teriam, nos termos dos Acordos, de ascender a 2% do PIB), seja porque todos – incluindo a Turquia – assumiram uma posição unívoca de condenação do ataque. Ora, se o objetivo de Putin era enfraquecer a NATO, isso parece ter sido um ato falhado. A NATO não só parece bastante unida, como poderá receber, a breve trecho, países historicamente neutros, como a Suécia e a Finlândia. Mais, com o distanciamento dos EUA, a NATO aparece, pela primeira vez, muito mais como uma coligação de países preocupados com a sua defesa comum, do que como uma extensão dos interesses americanos na sua relação com os despojos da Guerra-Fria.
Uma nova União Europeia emerge, construída em cima da morte da Paz Perpétua. Todas estas mudanças terão, porém, um preço. Mas é visível que a Europa está hoje, muito mais do que seria expectável há duas semanas atrás, comprometida com a integração de refugiados, com o investimento em Defesa e com a soberania energética. O mundo ocidental e, eventualmente, outros países com peso global, mostram estar disponíveis para pagar o preço económico das sanções, conscientes de que isso será sempre preferível a uma escalada de guerra.
Veremos se nos próximos tempos a realidade confirma a minha utopia, ou se, com o desgaste, teremos desunião. Até lá, devemos procurar honrar, cada um dentro da sua capacidade, aquilo que é essencial: o nosso sentido de humanidade e respeito pela dignidade humana. Dos ucranianos, e dos milhões de cidadãos russos que, por esta hora, estão também em sofrimento. Os que por estes dias acreditam, é tempo de voltar a rezar. Os que não acreditam, podem também, em nome da humanidade, transformar as suas orações em ações. Por todas as mães que choram os seus homens. Pelos pais que perdem os seus filhos. Pelos filhos que estão longe dos pais. Pelos que deixam as suas vidas para trás, sem esperança. A exemplaridade e abnegação das comunidades ucranianas no mundo – e também em Portugal – tornaram a reação solidária de todos, imparável. Mas não esqueçamos que, se é o povo ucraniano quem hoje resiste a Putin, é no povo sofredor da Rússia que está a solução para o fim da sua tirania. É uma utopia? É. Mas as verdadeiras revoluções, as que merecem o nosso empenho, são as que, um pouco por todo o mundo, se fizeram em nome da Paz.
Nota final: No passado dia 25 de Fevereiro O Insurgente festejou 17 anos. Nessa altura, o meu pequeno mundo também mudou. Ao longo destes anos, exerci a minha militância cívica n’O Insurgente e a partir d’O Insurgente. Mas não só: não tendo partido, é com o grupo de pessoas que o constituem, nas enormes divergências e casuais concordâncias, que mantenho a chama da cidadania e o gosto pela Res Publica. A todos eles, sem exceção, obrigado por me aturarem: sei que não tem sido fácil. Espero que esteja a ser tão bom para vocês como tem sido para mim.