Tenho reparado que na televisão se usam expressões como ‘o exército judeu’, ‘o primeiro ministro judeu’ e ‘a capital judia’. Num momento de delicadeza incaracterística, num dos canais deplorava-se há pouco tempo a morte de “uma criança judia de cinco anos”. Para a televisão, por outro lado, na Faixa de Gaza, habitada quase exclusivamente por crianças mortas, nem a criança mais ínfima é muçulmana.

Somos tentados a pensar que quem escreveu estas coisas queria referir-se a israelitas e cometeu um erro; talvez acreditasse que as duas palavras, porque muitas vezes designam as mesmas pessoas, querem dizer a mesma coisa. É um erro fácil de mostrar: quando digo por exemplo que todos os judeus têm o dever de ir à sinagoga não estou a sugerir que todos os israelitas tenham o dever de ir à sinagoga. Há israelitas que desde logo não têm esse dever (por exemplo porque não são judeus), e há não-israelitas que o têm (embora não porque sejam, por exemplo, portugueses).

Eis uma regra, para benefício dos jornalistas: a palavra ‘judeu’, nas notícias, pode geralmente, e com vantagem, ser substituída pelas locuções ‘israelita’ ou ‘de Israel’. Na leveza da nossa prosa comum, todavia, identifica-se os cidadãos de Israel com a religião da maior parte dos cidadãos de Israel. É caso único. Nem nos momentos de amor mais acrisolado por Timor se descreveu a Indonésia como ‘o estado muçulmano’.

A que se deve este erro? Imaginemos que o telejornal passava a começar com expressões de rancor dirigidas a alguém designado como ‘o primeiro-ministro católico’. Naturalmente, seguir-se-ia a longa demonstração da necessidade histórica do apuramento da selecção católica para o Campeonato Europeu de futebol; crianças católicas seriam depois nesse telejornal repetidamente apunhaladas na província, ou deitadas para banheiras de água a ferver; muitas mulheres católicas seriam mostradas nas bichas dos hipermercados; octogenários católicos seriam atropelados (por carros conduzidos em contramão por cães perigosos); e, a terminar, a oposição manifestaria a necessidade de manter centros de decisão católicos em certos sectores estratégicos da economia.

Quase nenhum jornalista se sente tentado por estas maneiras de falar: os católicos, porque quase já não imaginam que todos sejam católicos; e os outros, porque imaginam que todos são como eles. A que se deve então, pergunto de novo, aquele erro tão português? Uma possibilidade é que se deva a um hábito europeu anterior a 1945 que, como o amor pela lusofonia e pela uva morangueira, persiste inexplicavelmente em Portugal. Durante muitos anos, de facto, em alegre algazarra, entre Calais e os Urais, entre Bergen e Olhão, a maior parte dos antepassados dos nossos jornalistas falou com gosto de crianças judias, embora geralmente não deplorasse as suas mortes ou aliás as suas vidas.

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