Apesar dos factos em contrário, a verdade é que a Covid é a maior ameaça à humanidade desde a invenção da gaita de foles. À cadência actual de mortos por dia, Portugal arrisca ficar desabitado em 10 mil ou 15 mil anos. Por isso, é muito importante o estado de contingência decretado pelo dr. Costa para todo o país a partir de dia 15. E é uma sorte sermos orientados por uma personalidade assim iluminada. E é mera sensatez eu ceder este espaço, habitualmente de opinião, ao inventário das ordens a cumprir escrupulosamente. Ei-las.
Ajuntamentos
Depende. Nos restaurantes dos centros comerciais, a menos de 300 metros das escolas e a mais de 3 mil km de um centro de abastecimento alimentar, os ajuntamentos estão limitados a quatro pessoas. Cinco, se uma usar trela. Nos restantes lugares, incluindo em casa, a coisa chega a dez (caso reúna onze alminhas na sala e a polícia aparecer, não hesite em entregar aquele cunhado insuportável). Doze em cada treze virologistas subscrevem estas decisões. Catorze em cada quinze cunhados são contra. Claro que um agregado familiar superior a dez alminhas não será separado, mas para quem partilha o lar com mais de nove criaturas a Covid é o menor dos seus problemas. Adenda: o limite de convivas sobe para 30 mil, ou dois milhões, se se tratar de uma pândega legal, ou seja, de eleitores do dr. Costa ou dos partidos aliados do dr. Costa (PSD excluído).
Álcool
As exactas “autoridades” que nos mandam lavar as mãos com álcool dificultam que lavemos a tripa com o dito. Há uma explicação para isto. A chatice é que ninguém, incluindo as “autoridades”, sabe qual é. O certo é que não se pode comprar bebidas alcoólicas após as oito da noite, excepto nas bombas de gasolina, em que não se pode comprá-las nunca, e nos restaurantes, em que se pode comprá-las sempre (se a pinga acompanhar a refeição: faça como os comunistas no Avante e mande vir uma reles carcaça, mas depois não se queixe que as vítimas da fome não se aguentam de pé). Novamente, o raciocínio subjacente é claríssimo. À primeira vista, parece que o vírus é seduzido por bêbados – mas só a certas horas, e sobretudo na proximidade de outros produtos inflamáveis. À segunda vista, é possível que o vírus não tenha nada a ver com o assunto e a restrição dos copos pretenda unicamente a erradicação de vícios malignos e a formação de um povo casto, conforme convém. Alguém conhece a situação de casinos e bordéis?
Comércio
Os estabelecimentos comerciais só podem abrir a partir das 10 horas, já que às 9 o vírus ainda anda vivaço e entretanto cansa-se. Felizmente, um estudo realizado por antropólogos da Universidade de Stanford apurou que o vírus não toma pequeno-almoço, não cuida do corpo e não se penteia, pelo que pastelarias, cafés, ginásios e cabeleireiros podem abrir mais cedo. Quanto aos horários de fecho, o dr. Costa deixou a matéria a cargo de especialistas: os autarcas. É uma decisão sábia. Os mesmos cérebros que investem 300 mil euros dos contribuintes para edificar uma rotunda e outros 300 mil para colocar-lhe em cima uma obra de arte jeitosa são os sujeitos ideais para, mediante algoritmos recursivos e equações de terceiro grau, decidirem se um supermercado deve fechar às 20.17 ou às 22.39. Em qualquer dos casos, o importante é diminuir os horários, aumentar a densidade de clientes nas lojas e confundir o bicho, que face à diversidade de escolha é incapaz de se decidir por um hospedeiro e vai embora aborrecido.
Discotecas
Podem abrir enquanto padarias ou casas de chá. Está por decidir se as casas de chá e as padarias podem abrir enquanto discotecas. E se uma loja de atoalhados pode abrir enquanto sede do sindicato dos vidreiros.
Festas
A menos que organizadas por estalinistas, trotskistas ou demais humoristas, cuja higiene convence o vírus de que já não há lugar para ele, as festas são proibidas. Em festas celebradas por pessoas normais, o vírus tende a sentir-se convidado e a integrar-se por osmose. Depois os talheres e as sobremesas não são suficientes e ninguém sabe porquê.
Futebol
Descontado o prof. Marcelo e cinco vultos anónimos, não são permitidos espectadores, o que significa que a média dos últimos 30 anos na generalidade dos estádios permanece inalterada. Para o dr. Costa, não se pode comparar o comportamento do público no futebol com o do cinema ou de um concerto musical, heavy metal e Camané incluídos. No futebol, os adeptos tendem a trocar afectos e cuspo, o que estimularia a propagação do vírus.
Isqueiros
Para já, não é preciso voltar a tirar licença para o respectivo uso. É questão de tempo. Até lá, convém fumar, uma das raras desculpas para dispensar a máscara sem ouvir impropérios de algum tarado, perdão, cidadão exemplar.
Lares
Não são problema. Dos milhões de mortos portugueses por Covid, os velhotes dos lares representam somente algumas centenas. Isto porque, explica o dr. Costa, logo em Abril o governo entrou em acção – e ainda não saiu. Para cúmulo, agora temos brigadas médicas distritais para intervir nos lares e aperfeiçoar os cuidados anteriores, tão fabulosos que são insusceptíveis de aperfeiçoamento.
Máscaras
Não é obrigatório usar máscara na rua. Mas é bastante aconselhável. Há meses que os espanhóis a usam até para saltar de pára-quedas e o número de infectados desceu para escassos 10 mil por dia. A máscara não serve apenas para nos proteger do vírus. Aliás, não serve de todo para isso: é um acessório de moda, uma afirmação de civilidade, um símbolo de obediência. Em muitos rostos, é também um melhoramento apreciável. Para os renitentes, a obrigatoriedade da máscara em transportes públicos e repartições do Estado é um excelente pretexto para não frequentar semelhantes pocilgas. Os bons cidadãos não tiram a deles desde 12 de Março, o que reforça sobremaneira o distanciamento social. Os cumprimentos de cortesia devem continuar a realizar-se com os cotovelos, a zona do corpo para onde se deve tossir e espirrar.
Trabalho
Como o “teletrabalho”, o “desfasamento” de horários só acontecerá nas duas áreas metropolitanas, que o resto do país está na lavoura ou na taberna e dá cabo do vírus com a sachola ou o bagaço. Em Lisboa e no Porto, os funcionários de uma empresa passam a chegar às pinguinhas, de dez em dez minutos para não se roçarem à porta. A técnica vai eliminar o ancestral procedimento de “o último a sair apaga a luz”, já que o primeiro acabou de entrar. Uma possível vantagem é que o “desfasamento” do horário dos trabalhadores, aliado à diminuição do horário da empresa, leva a que alguns limitem o expediente a meia hora diária. É mau para a produtividade e óptimo para a Netflix. Infelizmente, a pausa para café e para almoço é igualmente desencontrada, o que é bom para evitar os colegas que falam de bola ou decoração e péssimo para comentar a série que viram ontem. O dr. Costa garantiu que não haverá “um polícia ou um inspector atrás de cada pessoa, em cada local de trabalho”, até porque devemos assegurar o distanciamento social: o polícia vigia a dois metros. Além disso, o dr. Costa prometeu “controlo suplementar”, a cargo de uma Autoridade para as Condições do Trabalho. Ou pela ASAE. Ou pela FIFA. O vírus, que se aproveitava da chegada simultânea dos trabalhadores para saltar-lhes em cima, nem sabe onde se meteu. Se tudo correr pelo melhor, a empresa, esfrangalhada pelas regras e pelas multas, declara falência em dois tempos e, ao terceiro, o vírus está sozinho no parque de estacionamento.
Transportes públicos
Muitas das regras agora anunciadas evitam que os transportes públicos se encham nas horas de ponta. O problema é que, devido às regras ou às greves, fora das horas de ponta não há transportes públicos. Se houver, é ainda pior: as pessoas terão de andar neles.